sábado, 4 de abril de 2009



04 de abril de 2009
N° 15928 - A CENA MÉDICA | MOACYR SCLIAR


Falando da doença

Temos basicamente duas linguagens: aquela que falamos ou escrevemos e com a qual expressamos pensamentos, sentimentos, opiniões, e que serve basicamente para a comunicação entre pessoas; e a linguagem do corpo, que se traduz por sintomas e sinais: uma dor, uma febre, uma tumoração. Médicos são treinados para traduzir a linguagem da comunicação em linguagem do corpo. Assim, quando uma pessoa diz: “

Qualquer esforço me dá falta de ar, tenho de dormir com travesseiro alto”, o profissional “ouve” o coração dizendo que já não tem força para bombear o sangue, e que este, acumulando-se nos pulmões, está gerando dispneia, ou seja, falta de ar.

Significa isto que a narrativa da doença tem importância secundária? De modo algum. O paciente não é apenas o seu coração doente, ou o seu rim doente, ou o seu pâncreas doente. É uma pessoa, com uma história, com laços afetivos, com contexto cultural, e tudo isto aparece naquilo que a pessoa conta.

A Universidade de Columbia, em Nova York, tem um programa chamado Narrativa na Medicina, cujo objetivo é estudar as histórias que os pacientes contam, recorrendo para isto inclusive ao conhecimento que a literatura pode fornecer sobre a arte e a técnica da narrativa.

Ao longo do tempo multiplicaram-se as obras em que pacientes, por vezes famosos, contam a história de seus problemas. Aliás, posso dar um exemplo pessoal: minha estreia neste caderno deu-se através de um texto, Voltando à Vida, em que eu narrava a penosa experiência resultante de um grave acidente.

Agora, surge um novo e interessante relato: em Saga Lusa a cantora e compositora gaúcha Adriana Calcanhotto descreve os efeitos psicológicos de uma bad trip resultante de uma mistura de remédios contra a gripe e cortisona durante uma turnê realizada em Portugal. Adriana teve agitação, alucinações, pesadelos, crises de choro, mas narra estes eventos com um humor irônico que neutraliza o pavor que deve ter sentido.

E o fato de ter alguém a quem narrar – o leitor – certamente deve ter ajudado a artista, pessoa inteligente e culta, a elaborar o que com ela se passou. E notem, estamos falando de uma intoxicação medicamentosa eventual.

Falar sobre doença, escrever sobre doença: isto ajuda muito, do ponto de vista emocional. E está sendo facilitado pelos vários meios de divulgação agora ao alcance das pessoas. Este caderno Vida apresenta o blog que será iniciado pelo Raul Ferreira, da RBS TV, em zerohora.com.

Ele nos contará sobre sua experiência de ex-fumante e sobre sua luta contra o câncer. Importante para o Raul, importante para todos os que lerem. Partilhar narrativas é partilhar a nossa condição humana.

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