L.F. VERISSIMO
Momento
Gustave Flaubert escreveu, numa carta para um amigo: "Quando os deuses tinham deixado de existir e o Cristo ainda não viera, houve um momento único na História, entre Cícero e Marco Aurélio, em que o homem ficou sozinho".
As divindades pagãs nunca deixaram de existir, mesmo com o triunfo do cristianismo, e a Roma evocada por Flaubert era apenas Roma, não era o mundo.
Mas, no breve momento de solidão flagrado pelo escritor, o homem ocidental se viu livre da metafísica - e não gostou, claro.
Quem quer ficar sozinho num mundo que não domina e mal compreende, sem o apoio e o consolo de uma teologia, qualquer teologia? O monoteísmo paternal substituiu as divindades convivais da antiguidade, em pouco tempo Constantino adotaria o cristianismo como a religião do império e o homem perdeu o seu momento único, a oportunidade de se emancipar dos deuses.
A ciência, pelo menos até Einstein, nunca pretendeu desafiar a metafísica dominante, mesmo quando desmentia seus dogmas.
Copérnico cumpria seus deveres de cônego da catedral de Frauenburg enquanto bolava a heresia que destruiria mil anos de ensinamento da Igreja, e seu tratado revolucionário sobre o universo heliocêntrico foi dedicado, sem nenhuma ironia que se saiba, ao papa Paulo III.
Galileu também foi inocentemente a Roma demonstrar na corte papal o telescópio com o qual confirmara a teoria explosiva de Copérnico, talvez o exemplo histórico mais acabado de falar em corda em casa de enforcado.
Quando foi julgado pela Inquisição, Galileu concordou em renunciar à ideia maluca de que a Terra se movia em torno do Sol, para ficar vivo, e a frase famosa que teria dito baixinho - "E pur si muove" - só foi acrescentada ao relato do julgamento um século depois, quando provavelmente também se originou a frase "se não é verdade, é um bom achado".
Quando o astrônomo Edmond Halley, o do cometa, entusiasmado com a recém-publicada Principia de Isaac Newton, quis dar uma ideia da importância da teoria newtoniana da gravidade e do movimento dos astros, disse que, com ela "fomos admitidos aos banquetes dos deuses", pois até então a ciência só especulara sobre a geometria celestial - algo como o Woody Allen dizendo que fazer cinema sério, ao contrário de comédias, era sentar-se na mesa dos adultos.
Com Newton, passamos a conversar seriamente com os deuses.
Halley preferiu "deuses" a Deus, evocando o tempo pré- cristão em que as divindades andavam entre os homens e podiam até ser seus comensais.
O trabalho de Newton fazia parte da "filosofia natural", o pseudônimo com que, na Europa do século 17, a ciência especulativa convivia com os dogmas religiosos.
Os banquetes com os deuses não eram exatamente atos de rebeldia contra a teologia, mas uma maneira de trazer a metafísica de volta a um plano humano.
Mas o momento único da emancipação possível já passara.
Luis Fernando Verissimo está em licença médica.
Esta coluna foi publicada originalmente em 28 de março de 2016.
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