quinta-feira, 12 de agosto de 2021


DAVID COIMBRA

Eu ia lhe chamar enquanto corria a barca

Tocou Preta Pretinha no rádio do carro. Comecei a cantar: "Eu sou um pássaro que vivo avoando, vivo avoando sem nunca mais parar..."

Houve uma vez um verão em que fui acampar em Cidreira com a turma da faculdade. Certa noite, estávamos sentados na areia da praia, numa rodinha em que se bebia e se fumava e se dizia bobagem, aí alguém tomou do violão e puxou o laiá laiá de Preta Pretinha. Todo mundo acompanhou, mas, na hora do refrão, a turma se dividiu por instinto. Metade cantava:

"Eu ia lhe chamar!"

E a outra metade:

"Enquanto corria a barca!"

Sabe que foi bonito? Hoje, cada vez que ouço Preta Pretinha me lembro daquele antigo verão.

Os Novos Baianos viviam como todos queríamos viver: numa república que instalaram em um sítio na periferia do Rio. Passavam o dia jogando futebol e cantando. Tem no YouTube um vídeo que mostra exatamente isso. Eles estão jogando bola e, de repente, o Moraes Moreira sai da pelada, toma do violão e começa a cantar Preta Pretinha. Logo se juntam a ele Pepeu Gomes, Paulinho Boca de Cantor, todos os Novos Baianos, com destaque para Baby Consuelo empunhando, muito concentrada, dois chocalhos.

Moraes Moreira contava que, um dia, uma moça disse para ele que seu sonho era morar com os Novos Baianos no sítio do Rio. Ele respondeu:

- Tome juízo. Você não sabe o que acontecia lá.

Ou seja: era para lá que todos nós devíamos ir, nós, que ainda acalentamos o sonho de uma vida leve, vivida entre amigos e amores, com muitos risos e poucas dores, uma vida em que experimentaríamos o máximo possível desse bem intangível e inatingível, a liberdade.

Só que nós envelhecemos, é isso que aconteceu conosco. Quando você fica velho, deixa de frequentar as quadras de futebol e passa a frequentar farmácias. Você adquiriu responsabilidades, despesas e filhos que não tinha na juventude. Ou seja: a vida em uma comunidade hippie seria impossível, depois de certa idade.

Ou será que é possível?

Ouvindo Preta Pretinha no rádio do carro, fiquei pensando nisso. E se nós, velhos amigos velhos, decidíssemos morar AGORA em uma república, o que seria de nós? Será que não seria mais divertido? Será que não nos ajudaríamos mutuamente, cuidando uns dos outros? Será que não seria até mais saudável?

Quantos amigos moraríamos juntos em um aprazível condomínio à beira-mar? Dez? Vinte? Posso imaginar nossa vida em comum. Posso nos ver compartilhando refeições, bebendo juntos, rindo e sorrindo, e talvez até cantando:

"Abre a porta e a janela

E vem ver o sol nascer".

DAVID COIMBRA

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