terça-feira, 10 de agosto de 2021


O ataque dos índios charrua

Existe ainda a Água Mineral Charrua? Quando eu era guri, existia. Água Mineral Charrua e Minuano Limão, acho que da mesma empresa. Sinto saudade de ambos. O Minuano Limão, geladinho, era uma delícia. Pena que a mãe só comprava de vez em quando. E a Charrua, o que mais gostava nela era o seu rótulo - um índio (charrua, evidentemente) galopando deitado de lado em um cavalo sem arreios, a mão esquerda segurando fortemente nas crinas, a direita empunhando uma comprida lança.

Ficava longo tempo admirando aquele desenho, imaginando um ataque dos índios charrua, pensando em como eles eram bravos a ponto de serem eternizados em uma marca de água mineral do século 20.

Pois estava certo. Os charrua eram mesmo indômitos e, quando os chamo de indômitos, estou dizendo que não se deixavam domesticar, como ocorreu com tantas outras etnias indígenas no Brasil.

Os charrua eram índios do extremos Sul, viviam entre Uruguai, Argentina e sul do Rio Grande do Sul. Eles usavam a boleadeira, esse símbolo do Pampa, e eram o que os antropólogos chamam hoje de "semissedentários". Quer dizer: passavam algum tempo em um sítio e, quando os recursos se esgotavam, mudavam-se. Jamais se submeteram ao homem branco. Jamais! E por isso foram dizimados.

Os charrua, como povo, estão extintos, mas seu espírito viceja no gaúcho insubmisso, gaudério, rebelde e orgulhoso que se esconde em alguns rincões do Pampa. Lembro do grande cantor Jorge Drexler na cerimônia do Oscar. Sua bela composição Al Outro Lado del Rio ganhou na categoria Melhor Música, só que Drexler foi proibido de cantá-la na cerimônia de premiação. Em vez dele, quem executou (mesmo!) a música foi o ator Antonio Banderas.

Na hora da entrega da estatueta, porém, não havia alternativa: Jorge Drexler é quem teria de buscá-la. E ele o fez. Levantou-se de sua poltrona, vibrou rapidamente com o punho erguido, pôs-se em frente ao microfone e não falou; cantou. A capela, agachando-se para alcançar o microfone, Drexler cantou um trecho de Al Outro Lado del Rio, mostrou como se fazia, despediu-se e voltou para seu assento. Foi um protesto corajoso, inteligente e vigoroso. Um protesto uruguaio. Um protesto charrua. Só um charrua irredutível seria capaz de tanto.

O espírito charrua impregnou os gaúchos também no futebol. Argentinos, uruguaios e sul-rio-grandenses nunca se submeteram ao futebol empinado, gracioso e manemolente do resto do Brasil. O jogo charrua sempre foi de imposição, de ocupação de espaços, de seriedade e de bravura. Como o Inter no Maracanã, domingo passado, diante de um Flamengo de festa e incenso. Inter que não teve um volante, nem dois ou mesmo três, mas QUATRO. Quatro volantes! Marcando, mordendo, rosnando, cavalgando deitados em seus cavalos velozes, de lança na mão, surpreendendo os inimigos, derrotando-os e até lhes causando admiração. Viva o resgate do nosso estilo de jogar! Viva o futebol charrua!

DAVID COIMBRA

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