O império do presente
Pegue uma fala do passado de uma personalidade histórica. Tire do contexto, ou seja, leia com a sensibilidade atual e faça um escândalo. Dá sempre certo. Ou ainda, escolha para Cristo algum desavisado, que ainda não trocou o vocabulário e patina nos detalhes do politicamente correto. A gritaria é igualmente aceita e o cancelamento celebrado. Muitas vezes com razão, outras nem tanto, outras apenas é o efeito manada e a vontade de fazer a coisa certa. Se é que pode ser certo linchar.
Que fique claro, refiro-me a questões de comportamento e de opinião que não tenham sido de fato criminosas. Para estas, não contem comigo, pois, mesmo que alguém mereça, é sempre um exercício covarde: todos contra um. Aproveitam-se da falha de alguém para ficar bem na foto do álbum das pessoas ditas corretas. A desproporção lógica nesses casos costuma ser total: uma vida correta e um erro equivalem a uma vida de equívocos.
O motor que alimenta esse movimento é o império absoluto do presente. Agimos como se vivêssemos no ápice do movimento civilizatório, portanto no direito e no dever de corrigir a humanidade atual e passada. Essa inflação do presente apaga a sabedoria do passado. Atuamos como se fôssemos os primeiros a refletir sobre a condição humana e seus problemas, ou que só agora tivéssemos a clareza para fazê-lo. Na realidade, somos tão rudimentares quanto os antepassados, apenas variam os aspectos.
Uma das razões do obscurantismo contemporâneo vem dessa postura arrogante de pensar que já damos conta dos mistérios humanos, que possuímos ferramentas teóricas suficientes. É claro que temos progressos, como nunca, mas eles são basicamente científicos e tecnológicos; o progresso moral não necessariamente acompanha os anteriores. Existe antes um descompasso brutal entre os dois e nada nos garante que não possamos recuar moralmente.
Além disso, o fato de termos feito progressos científicos extraordinários não quer dizer que não existam dúvidas. Seguimos no escuro sobre como funciona uma série de coisas na natureza e muito menos damos conta dos descaminhos do nosso comportamento.
Antes de tudo, é uma falta de perspectiva histórica. Inevitavelmente seremos bárbaros para as gerações seguintes. Tenho curiosidade sobre do que vão nos acusar. Aposto que vão dizer que tínhamos "complexo de profeta": a ânsia de reformar o mundo e os outros, sem lastro de conhecimento para tanto.
A grande questão não é o que os homens no passado não viram e pecaram, mas o que nós no presente não enxergamos e erramos. Minha torcida é para que, daqui a alguns anos, a gritaria esteja ao lado de quem diz que é um absurdo julgar sem levar em conta o contexto histórico, os costumes da época do fato ou do dito. Em outras palavras, quão estúpido é pensar que possa existir uma ética atemporal.
MÁRIO CORSO
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