14 DE AGOSTO DE 2021
MONJA COEN
NOSSOS MORTOS ENTRE NÓS
Tantas mortes, tantas dores. Cada morte é uma despedida de alguém que não voltará. Ao mesmo tempo, a memória dos encontros e desencontros estará sempre gravada em nós.
Nunca estamos a sós. Não são fantasmas ou sombras que nos assustam. São impressões tão fortemente gravadas que reconhecemos nossos mortos vivendo em nós.
Um gesto de meu pai, a maneira de falar de minha avó, o gesto de minha mãe, o olhar de meu avô. Reconheço suas faces nas minhas faces, no meu corpo, mãos, pés. Estaremos sempre juntos, embora nunca mais nos encontraremos presencialmente.
Então os procuro pelas telas do grande computador cérebro. Às vezes sou capaz de acessar algumas memórias. Outras vezes me distraio e perco os programas, os acessos. Mas sei que continuam gravados, guardados na grande memória ancestral.
Pelo menos uma vez ao ano, budistas japoneses se reúnem em templos e casas familiares para orar pelos ancestrais. Parte do Japão celebra em julho e parte em agosto. Este 14 de agosto é um dos dias dessa grande celebração anual. São vários dias, de 13 a 18. Os ancestrais são invocados, os parentes se reúnem. É feriado nacional.
Estações de trem lotadas, estradas congestionadas. Ninguém viaja para passear, mas para reencontrar os vivos e os mortos.
Ofertas de alimentos, de incenso, de velas, de preces. Os tabletes memoriais, com o nome da família e dos mortos, saem dos altares familiares e são colocados em uma mesa especial, com espaço para ofertas e para os cavalinhos de pepino e de berinjela, as patas de palitos, as crinas e o rabos de cabelos de espigas de milho. São os cavalinhos que transportam os espíritos dos mortos.
Os parentes reunidos conversam sobre o passado, o futuro e o presente. Comem, bebem, brincam, rememoram e reconhecem uns nos outros os traços ancestrais. Monges e monjas vão a todas as casas para as orações especiais.
No último dia, todos dançam ao som de tambores e instrumentos musicais tradicionais. Essa dança circular é chamada de Obon Odori.
Ao final das Olimpíadas em Tóquio, domingo passado, havia gravações apresentando diferentes estilos de dança e de música, das diversas áreas do país. Eram as músicas e as danças circulares de homenagear os mortos. O cantar e o dançar dos vivos, que continuam a existência ancestral.
Tantos mortos. Mortos das guerras, dos massacres, mortos pelos vírus da pandemia e pelos vírus das mentes confusas, tortas, difusas, incapazes de entender, compreender e amar. Os mortos dos crimes, dos abusos, da ignorância, da raiva, da ganância humanas. Dos desastres naturais, dos tsunamis, terremotos, de incêndios nas matas e nas casas, das enchentes, desabamentos, mortos dos descuidos. Hiroshima e Nagasaki foram em agosto. Os museus e os monumentos são o compromisso de nunca mais usar armas nucleares. Será que manteremos esse compromisso?
Dançando e cantando as tradições de verão. Lanternas levando os espíritos dos mortos de volta aos túmulos e aos seus mundos.
Os tabletes memoriais voltam aos altares. Amigos e parentes retornam às suas casas, cidades, países. Há alguma semelhança com o final das Olimpíadas. Sucessores de atletas de todos os países. Depois dos embates, das medalhas, das lágrimas de alegria e tristeza, a despedida comovente e a esperança de um reencontro em 2024, pelos telhados de Paris.
Assim os parentes se despedem - dos vivos e dos mortos. Haverá um reencontro. Nos memoriais anuais. A vida continua, pois é, contínua.
Mãos em prece....
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