terça-feira, 24 de agosto de 2021


Vidas cruzadas

Minha companheira de vida adora palavras cruzadas. Não é a minha diversão preferida. Mas gosto quando, lá pelas tantas da noite, à espera do sono, ela sussurra algo como:

- Fraudador do erário público, com cinco sílabas.

Depois de esgotar o meu estoque de ladrões, estelionatários, vigaristas, falsários, sonegadores e prevaricadores, localizo o contrabandista solicitado. Minha longa militância no jornalismo às vezes ajuda, mas perco de goleada para ela, especialmente nessas cruzadas silábicas que nem sequer indicam o número de letras de cada vocábulo.

Na verdade, minha principal participação no seu passatempo sonífero é outra: comprar revistinhas com alto grau de dificuldade, o que nem todas as bancas vendem. Pois foi exatamente para isso que saí mascarado na semana passada, num bairro da zona sul da Capital. Caminhava pela calçada quando deparei com um casal de moradores de rua. Os dois estavam sentados no chão, escorados num muro, entre cobertores e colchonetes, e faziam... palavras cruzadas.

O inusitado e a coincidência me fizeram parar. Eles me olharam de baixo para cima, sem nada dizer. Então me justifiquei:

- Vocês gostam de palavras cruzadas? Precisam de alguma coisa?

O homem respondeu com voz serena e firme: - Precisamos de canetas! - e me mostrou que a que estavam compartilhando rabiscava com falhas.

Confesso que me senti um tanto intrometido, algo assim como Alexandre diante de Diógenes na célebre anedota grega. Porém, como era uma tarde sem sol, voltei com esferográficas, algumas revistinhas novas e resolvi entrevistar os cruzadistas.

Ele, um barbudo sério e simpático, com primeiro grau completo, está há quase 20 anos na rua. Ela, silenciosa e sorridente, com o segundo grau concluído, chegou do interior do Estado há seis anos e encontrou no companheiro experiente um guia confiável para a vida ao relento. Mais não perguntei, a não ser os nomes, que revelo com a devida reserva aos adeptos da arte de cruzar letrinhas: apóstolo que perseguia os discípulos de Jesus antes de se converter, duas sílabas; versão feminina do deus latino do vinho, aquela que inicia o dia e a noite, três sílabas.

Certamente ele e ela farão melhor uso das canetas do que as autoridades que deveriam usá-las para cuidar melhor do erário público e para assegurar vida mais digna à população vulnerável.

NÍLSON SOUZA 

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