sábado, 21 de agosto de 2021


O VOYEURISMO NOS FASCINA

Samanta Schweblin - Escritora argentina, autora do recém-lançado "Kentukis"

O preço é salgado, mas a utilidade é irresistível - por US$ 279, consumidores de todo o mundo podem adquirir a febre do momento: kentukis, espécie de animal de estimação eletrônico que permite o acesso remoto à privacidade de seus proprietários. A ideia, entre sedutora e assustadora, é o que move o romance Kentukis, da argentina Samanta Schweblin (tradução de Livia Deorsola).

Aos 43 anos, Samanta é elogiada por seu estilo inquietante de escrita, que a torna herdeira do realismo fantástico construído por nomes como Jorge Luis Borges, Adolfo Bioy Casares e Julio Cortázar. Se a comparação impõe um destino pesado, Samanta livra-se dele (ou se apossa, com firmeza) em romances como Kentukis.

O livro é, ao mesmo tempo, engenhoso e engraçado. Presentes nas vitrines das grandes cidades, os kentukis são como bichos de pelúcia cujo formato fica a critério do comprador, de dragão a coelho. O que é comum a todos é a presença de uma câmera acoplada nos olhos. Só que o controle não está nas mãos do comprador e sim de outra pessoa que, anônima, manipula o bichinho por meio de um tablet. O acordo é tácito: quem compra um kentuki aceita ser observado e cria, inevitavelmente, uma conexão com um desconhecido.

Trata-se de um novo modo de voyeurismo, pois o manipulador tem a permissão de entrar na casa do outro e circular pelos cômodos, presenciando cenas de extremada intimidade. As diferentes formas de uso e suas consequências inspiram um catálogo de histórias no qual se constrói o romance. É a extensão do princípio de permitir à tecnologia condicionar as relações humanas.

Afinal, se os "mestres" acreditam controlar os bichinhos, eles são, ao mesmo tempo, escravos do olhar dos que os habitam. Em vários trechos, o leitor se tranquiliza por crer estar diante de um romance distópico ou, mais confortável, de ficção científica. A escrita vertiginosa de Samanta, porém, provoca a incômoda sensação de estar diante de um abismo. O afeto se revela tão importante como a infâmia nesse poderoso retrato do inquietante lado da tecnologia, aquele que descortina a nossa fragilidade. Sobre o assunto, Samanta Schweblin respondeu, por e-mail, às seguintes questões.

NOSSA CRESCENTE DEPENDÊNCIA DAS MÍDIAS SOCIAIS FOI SUA MAIOR INSPIRAÇÃO PARA KENTUKIS?

Era o ruído de fundo, algo que me incomodava e cujas consequências não podia prever. Nunca pensei que teria interesse em escrever sobre o problema da tecnologia, mas, assim que a ideia do kentuki passou pela minha cabeça, não consegui parar de pensar nisso. Agora, a distância, percebo que o dispositivo do kentuki é apenas uma desculpa. É um livro sobre o desejo, o medo, o preconceito, como é hoje ser cidadão deste mundo globalizado e cada vez mais fechado e opressor. Um mundo no qual, às vezes, se não entendemos as regras, pode ser muito fácil cruzar os limites entre vítimas e vitimizadores.

NÃO HÁ DETALHES TÉCNICOS NO TEXTO. FOI DIFÍCIL ESCREVER SOBRE TECNOLOGIA E MÍDIAS SOCIAIS?

Foi um desafio premeditado. Algo muito estranho vem acontecendo na literatura contemporânea há muito tempo: vivemos uma vida híper tecnologizada e a abraçamos com total naturalidade. Ninguém mais se surpreende com quase nada. Ninguém diz "olha que maravilhoso, isso parece o futuro". Mas, se a mesma coisa que vivemos é escrita nas entrelinhas de um romance, então é classificada como "ficção científica". Uma poesia em que os personagens trocam mensagens é poesia de alta tecnologia e assim por diante. É um ruído fascinante, então por que o aceitamos na vida real mas não nas nossas ficções? Não há nada no romance Kentukis que ainda não exista em nosso mundo, e eu queria deixar todos os detalhes técnicos de fora para ajudar nessa leitura realista, embora às vezes seja chamada de "distópico", de "ficção científica". Acho essa resposta dos leitores fascinante. É como se a realidade se movesse tão rápido que podemos absorvê-la em nossas rotinas, mas ainda não podemos pensar nela como nossa.

O KENTUKI É UTILIZADO POR IDOSOS QUE PROCURAM COMPANHIA E POR CRIANÇAS QUE CARECEM DA ATENÇÃO DOS PAIS: A TECNOLOGIA É A SOLUÇÃO PARA A SOLIDÃO?

Pode ser uma solução, por que não? Moro a 12 mil quilômetros da minha família e, se eu sentir falta deles, posso ligar e bater um papo. Não é o mesmo que o contato físico, mas considero um encontro real, com suas vantagens e desvantagens.

POR OUTRO LADO, UM KENTUKI SALVOU A VIDA DE UMA ADOLESCENTE QUE HAVIA SIDO SEQUESTRADA. OU SEJA, TAMBÉM HÁ UM ASPECTO POSITIVO, NÃO?

Não devemos pensar na tecnologia como algo positivo ou negativo. A tecnologia sempre esteve conosco, foi também a invenção do machado e da roda, e depende de para que a usamos. No caso das redes sociais e de todos esses novos dispositivos de comunicação, o problema é que avançam tão rápido que é difícil entendermos seus limites éticos, legais, de privacidade, educação...

EM QUE MEDIDA A TECNOLOGIA CONDICIONA AS RELAÇÕES HUMANAS?

É uma ferramenta, que pode ser útil para certas coisas e, para outras, exibir uma grande limitação ou mesmo um impedimento. Suponho que seja perigoso quando a tecnologia substitui completamente os relacionamentos face a face, no trabalho, no ensino e pessoalmente. Mas, às vezes, também permite conexões que, de outra forma, seriam impossíveis. Acredito que a pandemia esticou esses limites, para melhor e para pior: aprendemos de que forma essas conexões nos são úteis e o que perdemos quando nos comunicamos por meio delas. O importante agora é perceber o impacto que esses novos costumes têm sobre nós e reelegê-los ou abandoná-los com a consciência de que agora começamos a voltar a uma certa normalidade. Não por hábito, mas escolhendo novamente.

DE ONDE SURGIU O NOME "KENTUKI"?

Espontaneamente durante o primeiro rascunho. Só busquei algum nome estranho e familiar ao mesmo tempo, sem dar muita importância, porque queria ir em frente com a ideia que estava se formando na minha cabeça, não queria ser distraída. Quando percebi que o texto era sério, resolvi encontrar um nome definitivo. E fiz uma lista das coisas que gostaria que aquele nome implicasse. Queria uma marca que soasse estrangeira, mas também popular, barata. Yankee, mas também japonês ou chinês. A uma marca que já ouvimos em outro local, embora não nos lembremos de onde. Fiz uma pesquisa no Google com a palavra "kentukis" e saiu um cavalo russo premiado, uma refeição tradicional japonesa, uma cidade ucraniana e outra australiana. Surgiram personagens e clubes e até informações em línguas que não conheço. E então pensei que "kentukis" era perfeito. Era pura confusão e, ao mesmo tempo, uma sensação de familiaridade.

UM KENTUKI É FASCINANTE PORQUE PERMITE NAVEGAR SEM SER UMA PESSOA, PERCORRER OS CÔMODOS DA CASA DE OUTRO. POR QUE PREFERIMOS ESPIONAR OS OUTROS?

O voyeurismo nos fascina. Talvez tenha a ver com a ideia de que, se você espiar o outro quando ele não sabe que está sendo visto, então ele não pode agir, não pode te enganar, você o vê como ele é, você o enxerga na mais verdade absoluta. E há algo em ver a verdade do outro que nos ajuda a pensar sobre a nossa, sobre quem realmente somos, sobre como somos para nós mesmos.

ATÉ ONDE É POSSÍVEL OLHAR SEM VIOLAR A PRIVACIDADE DO OUTRO?

Ainda estamos aprendendo. A literatura é útil para fazer esse exercício sem violar ninguém. Há outra tecnologia tão eficaz para isso quanto a literatura? Imagine: mergulhar em um espaço em que você pode enfrentar seus maiores medos, olhá-los de perto e fazer a si mesmo as perguntas importantes - como eu poderia sobreviver a isso, como ensaiar essas emoções, como testar-se, provar-se, colocar-se no lugar de outra pessoa e entender o quão longe é possível ir com ela? E, depois, voltar para a vida real, para a sua vida, sem uma única ferida, pois "não é real", mas com todas aquelas novas informações existenciais sobre você. Essa é uma tecnologia espetacular!

QUAIS PERGUNTAS VOCÊ PRETENDIA RESPONDER COM O ROMANCE? ALGO SOBRE IDENTIDADE?

Entre muitas outras coisas, queria me perguntar sobre a solidão que às vezes nos reserva a tecnologia e sobre todos os limites que nós mesmos quebramos quando não entendemos totalmente como ela funciona. Queria que os leitores tivessem empatia com os personagens a ponto de pensar que, em situações semelhantes, eles teriam tomado as mesmas decisões que os personagens. Para mostrar a eles, mas principalmente a mim, quantas vezes pensamos que somos os mocinhos, mas na realidade estamos fazendo um dano irreparável. O quanto podemos romper e nos lastimar ao jogar com tecnologias que parecem familiares para nós - como mídia social e todos os nossos dispositivos de comunicação "inofensivos" -, mas que, na verdade, não sabemos de nada.

O LIVRO - Kentukis

De Samanta Schweblin. Editora Fósforo, 192 páginas, R$ 64,90 (impresso) e R$ 49,90 (e-book)

 Estadão Conteúdo - UBIRATAN BRASIL 

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