domingo, 1 de novembro de 2020


31 DE OUTUBRO DE 2020
CLAUDIA TAJES

"Viagem ao Redor do Meu Quarto" 

Um livro com esse título, no momento em que não se pode sair de casa, só podia virar best-seller nos nossos dias - ainda que publicado pela primeira vez em 1795 pelo conde francês, e também tenente, Xavier de Maistre. Se vivesse hoje, aliás, Xavier seria chamado de comunista, perseguido nas redes e depois cancelado, ele que acabou lutando ao lado dos russos contra os franceses. Mas essa é outra história.

Não foi fácil encontrar o livro, esgotado nos sites e sumido das livrarias, nas minhas muitas tentativas de comprar por telefone. Saudade de pisar em uma livraria, minha filha. E em qualquer outro lugar fora de casa, sem culpa e sem medo. Inacreditável que alguém possa ser contra a vacina depois de um ano como este, em que deixamos de viver. Aguardemos as cenas dos próximos capítulos. Ainda acredito que a ignorância não vai vencer.

Demorou, mas Viagem ao Redor do Meu Quarto chegou na minha porta. A história: depois de se envolver em um quiproquó amoroso nos folguedos pré-carnaval, incluindo um duelo com um oficial na sequência - o que prova que não somos só nós, seres tropicais, que chutamos o balde quando fevereiro surge na avenida - , o nobre Xavier, então com 31 anos, foi punido com um confinamento disciplinar de 42 dias em seus aposentos. Não podia sair para nada, ir atrás de um Oliú ou de um x-coração na madruga. Suas únicas companhias eram um mordomo e seu cachorro, nenhum deles muito falante. Isolado, sem videogame, sem WhatsApp, sem Instagram, Xavier só tinha duas distrações, ler e escrever.

Sorte dos leitores. O pequeno (no sentido físico) livro autobiográfico nos convida a fazer turismo pelo quarto do autor, enquanto cada móvel, cada canto, cada objeto serve como ponto de partida para reflexões sobre o amor, a amizade, a filosofia, a política, a vida. Cabe muita coisa dentro de um quarto. Cabe o infinito que existe em uma pessoa. É preciso dizer que Xavier é um homem de outros tempos, o discurso dele não passou pelos filtros de agora. Nada que justifique um banimento, ufa.

Agora mesmo, viajando ao redor do meu quarto, a chuva na janela a confirmar que este é mais um dia para ficar em casa, dou de cara com as minhas memórias recentes. A bem da verdade, sou hóspede do meu filho desde o começo do distanciamento, em março. Nada é exatamente meu aqui, nem o quarto, cedido pelo dono da casa. Mas dá para viajar nele, de qualquer jeito.

O guarda-roupa chega a acumular pó, agora que pouco é aberto para variar o figurino. Existem as roupas da pandemia, as que parecem acolher e consolar, e é com elas que sobrevivo. Vejo no Instagram as amigas que se produzem para não sair. Ainda bem que elas resistem.

A árvore do prédio está quase entrando pela janela. Teve melhor destino que o guapuruvu da Rua 24 de Outubro, cujo crime foi um galho despencar em cima do carro de alguém. Nada que um martelinho de ouro não resolvesse, mas o condomínio achou por bem arrancar a árvore inteira dali. Não contava, certamente, com a reação de alguns passantes e vizinhos. Mesmo na pandemia, ainda há quem se importe.

Um livro fechado ao lado da cama mostra que o sono venceu a boa intenção de começar uma leitura nova na noite passada. Uma grande caixa com coisas de todos os tipos está com a tampa aberta, denunciando uma busca e apreensão na madrugada. O japonês da Federal não foi, deve ter sido o dono da casa. Fitas coloridas que sobraram coladas no teto depois de uma filmagem balançam no ritmo do ventilador. Foram incorporadas à decoração, junto com outras tranqueiras de uma época em que ainda se trazia o mundo para dentro do apartamento.

Viagem ao Redor do Meu Quarto, o livro, é uma boa inspiração para se enxergar o cenário de sempre com olhos mais criativos - ainda que Xavier de Meistre tenha cumprido apenas 42 dias, e o nosso confinamento responsável não pareça perto do fim. Um bate e volta, percurso rápido que fica por muitos dias com a gente. Vale muito o embarque.

CLAUDIA TAJES

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