
Blindagem indecorosa
O acervo de ações legislativas obscenas urdidas pela Câmara dos Deputados com o único propósito de beneficiar os próprios parlamentares e a classe política ganhou uma nova obra indecorosa. Na noite de terça-feira, a Casa aprovou em dois turnos a chamada PEC da Blindagem, que amplia a autoproteção de deputados federais e senadores. Pelo texto chancelado, os membros do Congresso só podem ser processados criminalmente e presos em flagrante por delito inafiançável com a licença dos pares, por meio de votação secreta. É dever moral do Senado enterrar essa proposta, sem hesitação.
Parlamentares favoráveis à medida argumentam que a PEC recobra as regras criadas pela Constituição de 1988 e defende os congressistas de chantagens do Supremo Tribunal Federal (STF). Mas um rápido exame mostra que novos resguardos foram criados, como a votação secreta para a análise de casos de prisão e a inclusão dos presidentes dos partidos na lista de agentes favorecidos. Esses dirigentes, deve-se lembrar, manejam quantias cada vez maiores de recursos públicos. Até 2001, quando a norma que determinava licença prévia do Congresso caiu, de mais de 250 pedidos do STF para apurar condutas de parlamentares, apenas um foi aprovado.
Não resta dúvida, portanto: é de clareza solar que o objetivo é garantir impunidade em relação a malfeitos eventualmente cometidos. O Congresso avança de forma insaciável sobre o Orçamento da União e insiste em distribuir recursos vultosos, via emendas, sem a devida transparência. O resultado é a descoberta de uma profusão de desvios. Estão no STF mais de 80 investigações com suspeita de corrupção envolvendo emendas. É dessas responsabilizações que um amplo grupo de deputados, centrão à frente, quer escapar.
O intento indisfarçável é continuar a pulverizar recursos sem prestar contas e, de lambuja, praticamente garantir que não serão judicialmente incomodados. Não devem ser descartados outros efeitos maléficos, como o maior interesse do crime organizado, em busca constante por se infiltrar em instituições, de tentar eleger representantes para atuarem em Brasília. Estarão mais protegidos, afinal, como integrantes de uma casta quase intocável.
Com a PEC, a Câmara confirma que se converte cada vez mais em uma espécie de sindicato voltado prioritariamente a defender os interesses corporativistas, uma traição à sociedade que os elegeu. Para ser aprovada, precisava de ao menos 308 votos, o equivalente a dois terços da Casa. Obteve 353 no primeiro turno e 344 no segundo, com apoio maciço do centrão e do PL e de um grupo minoritário do PT. A maior parte da bancada gaúcha aderiu à blindagem.
Ao longo da manhã de ontem se observava que a proposta só não alcançou toda a desfaçatez planejada porque o quórum mais baixo após a meia-noite permitiu uma supressão no texto que derrubou a votação secreta para o aval a investigações. O posicionamento teria de ser nominal. Mas, em mais uma demonstração de despudor, lideranças do centrão, ainda ontem, articularam emenda aglutinativa e ressuscitaram o processo anônimo para salvar colegas em apuros policiais. Impõe-se que o Senado sepulte a pretensão da blindagem.
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