
Não tenho dinheiro
Sabe o que percebi? Não tenho dinheiro há meses - talvez mais de um ano. Não toco uma cédula há um tempão. Não visito mais caixa eletrônico. Nem me lembro da minha senha de segurança, ou de qual foi a última vez que dependi de um terminal físico. Deve ter sido para uma viagem.
Cansei. Tentava pagar em dinheiro e os balconistas nunca dispunham de troco.
Eu tirava uma nota de cem e já era malvisto. Soava como uma tática para levar o produto de graça.
A preguiça era tamanha que até eu virei vítima dela e fiquei ofendido porque minha gerente de conta no Banrisul me pediu para passar na agência e assinar uma papelada. Antigamente, eu ia ao banco todos os dias e suportava filas para quitar faturas ou realizar depósitos. Quando recebia um pagamento, aguentava de 15 a 30 minutos de espera para ser atendido no guichê e descontar um cheque. O bancário conferia a caligrafia do portador para autorizar que o valor caísse na conta. O que um Pix faz numa operação digital indolor.
Evitamos as pernadas, e o contato com as cédulas, que se tornam mais fictícias do que reais.
Pesquisa do Banco Central (BC) apontou aumento no número de pessoas - 53,4% da população - que acreditam que não vão utilizar dinheiro em espécie daqui a cinco anos. Circula apenas um terço das 450 milhões de notas de R$ 200 com a efígie do lobo-guará, a mais recente do país.
Hoje, minha carteira está vazia, a tal ponto que não há sentido em continuar o hábito. Aposentei-a por ausência de serviço. Posso andar sem cinto. Nada mais pesa na calça. Ela tampouco cai como antes.
Sequer preciso de identidade: tudo está no celular. Em breve, nem a chave de casa será necessária. Vamos nos reduzir a identificação com código e leitor facial na porta. Venho mitigando a lordose. Na juventude, eu carregava um calombo no bolso de trás do jeans, uma corcova de camelo incompleta, um autêntico abscesso masculino.
E pensar que já usei capanga, o pai dos acessórios de couro, uma bolsinha a tiracolo para cheques que eu segurava por uma alça. Esquecia-me dela com frequência em cima da mesa do escritório, pois vivia longe do corpo, como um satélite orbitando à parte.
E pensar que já usei pochete. Pochete não tem perdão. Não combina com coisa alguma. É vestir um autorama. Você parece um cangaceiro com a sua cartucheira. Só os cambistas revendendo ingresso mantêm sua espécie salva da extinção.
Estou mais elegante e menos abarrotado, magro como um avatar. Mas, em certos momentos, assalta-me a nostalgia das fotos 3x4 dos filhos e da esposa no estojinho azul de duas abas, que permanecia escondido no bolsinho da carteira.
Meu escapulário de vida. Meu talismã do amor. Meu pequeno altar doméstico. Minha cripta do olhar em chamas. Diante das poses sérias dos familiares, eu ria de pura gratidão de existir. _
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