terça-feira, 16 de setembro de 2025


16 de Setembro de 2025
CARPINEJAR

A mestre do churrasco

Era uma labareda altíssima, uma ciranda de viver, um entusiasmo de carisma, um facho de intensidade. Ardia imponente, convicta de dar clareza e luminosidade a quem estava ao seu lado. Ela não sorria: já gargalhava diretamente, sem aquecimento, habituada a grandes conquistas e proezas.

Com o tempero do afeto e a persuasão da igualdade, Clarice Chwartzmann tirou o monopólio dos homens da churrasqueira, treinou mais de 3 mil mulheres na arte do assado e transformou a mentalidade gaudéria, domando a cozinha de fogo.

Antes restritas ao papel secundário de se encarregar da salada de maionese, suas pupilas alcançaram o estrelato e deixaram muito marmanjo lambendo os ossos e babando na picanha que sangrava na tábua.

Ela estranhou que nenhuma das suas amigas fazia churrasco e decidiu mudar o cenário, aposentar os preconceitos, destruir os estereótipos, botar a bombacha e guardar o vestido de prenda no cabide. Com coragem, mostrou que o avental não tinha dono. A independência saiu das panelas e ganhou os espetos.

Tudo está lá no seu livro, um manual sentimental mesclando testemunho e técnicas de gastronomia, que virou seu testamento: Do Zero à Magia da Brasa: Seu guia essencial do churrasco (2025).

Nem sei como me despedir dessa pioneira, a chef Cla, que morreu de repente na noite de sábado, aos 60 anos, em decorrência de insuficiência cardíaca. Sofreu um infarto no Ceará, na segunda-feira, e não resistiu na UTI do Hospital Oswaldo Cruz, em São Paulo. Foi tão gaúcha, tão pampeana que seu adeus coincidiu com o início da Semana Farroupilha, sua festa predileta.

Herdou os macetes de seu pai, Nahum, em Passo Fundo (RS). Foi escolhida, entre as quatro filhas, para ser auxiliar nos churrascos de domingo. Acabou superando o seu mestre e, três décadas depois, converteria os plantões caseiros no crepitar das chamas em profissão, assumindo o magistério do carvão e da lenha.

Clarice costumava comparar a paciência da função ao exercício de amar: é preciso preparar o terreno, esquentar devagar, perceber o momento de ir trocando de assunto, salgar de elogios, até obter a intimidade da palavra, macia como a carne na temperatura certa.

Ela me interrogava: imagine como seria o relacionamento se o mesmo tempo dedicado a um costelão de 12 horas fosse direcionado à gentileza com quem você ama? Publicitária de formação, graduada na Famecos (PUCRS), trabalhou nos bastidores da construção do Multipalco, junto de Eva Sopher, realizando um sonho que, na época, nos anos 1990, parecia quixotesco.

Gostava de pôr a mão na fogueira pelos seus projetos. Seu rosto tornou-se conhecido em quadro do É de Casa, da TV Globo, e do Cozinheiros em Ação, do GNT, além de participações no Saia Justa e no Tempero de Família, com Rodrigo Hilbert.

Clarice também teve colaborações importantes no Canal Rural, com conteúdos que enalteciam tanto a tradição quanto a inovação. Entre eles, Pegando Fogo, programa de entrevistas com ênfase na culinária gaúcha, e De Bem com a Comida, focado na valorização dos ingredientes e na conexão entre o campo e a cidade, explorando a cadeia produtiva e aspectos de segurança alimentar.

Há pessoas que jamais se aquietarão em cinzas. Clarice é uma delas. A saudade queimará dentro de nós para sempre. 

CARPINEJAR

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