sábado, 22 de julho de 2023


22 DE JULHO DE 2023
J.J. CAMARGO

O INESGOTÁVEL PESADELO DAS MEMÓRIAS

O velho colono italiano, tratando de ajudar o conterrâneo que enfrentava uma separação litigiosa, deu-lhe uma recomendação, sabedoria pura: "Compadre, xingue o quanto puder, diga o que tenha vontade, mas nunca escreva nada, porque isso um dia vai se voltar contra você!".

A modernidade abolindo o hábito de escrever cartas, deu a impressão de ter resolvido a inconveniência desse tipo de delação. Mas que nada! O vídeo com o requinte de som e imagem estava a caminho para desmascarar os hipócritas, trazendo a eles o constrangimento de não ter como desmentir.

E então a ameaça potencial de algum indiscreto ter guardado (com propósito espúrio, por certo) alguma bobagem que escrevemos num momento pouco inspirado ficava rondando na expectativa de que algum injuriado pudesse, sabe-se lá por qual razão, desopilar.

Sempre penso nisso vendo filmes antigos de espionagem, quando, com frequência, repete-se a cena desesperada da queima de arquivo, quando uma célula terrorista era descoberta. Com a chegada da era digital, economizou-se a cremação rica de poluentes e passamos à prática asséptica e ecológica dos hackers.

Enfim, não importando qual recurso tecnológico tenha sido usado, foi sacramentada a morte do desmentido. Cabendo à vítima desavisada e aos seus envergonhados herdeiros dar o destino que quiserem ao cadáver, porque na essência permanecerá o que a memória virtual arquivou. E para sempre, porque o tempo da destruição tranquilizadora do computador foi em seguida ridicularizado pela criação debochada da "nuvem", uma denominação genial de um recurso cibernético que, mesmo com a dificuldade de entendimento de alguns políticos, já traz, no nome, uma informação implacável: ela não pode ser alcançada.

Permanece no plano "terrestre" a chance última de alegar que o que foi dito foi surrupiado de outro contexto, virou rotina, muitas vezes com cheiro de desespero, especialmente depois que surgiram os habilidosos editores do mal, capazes de mudar a ordem das palavras, dando-lhes a aparência de verdade absoluta.

Se isso não bastasse, ainda assombram os prodígios de inteligência artificial, que criou a possibilidade de ensinar o robô a reproduzir o tom de voz de alguém falecido e, através de depoimentos gravados em vida, ter acesso aos seus pensamentos políticos ou filosóficos, "ressuscitando-o" de tal maneira que consiga "dialogar" com seus velhos conhecidos, sem que esses possam reconhecer o embuste. Em resumo, estamos a caminho da fraude cibernética inalcançável.

Voltando ao italiano do início da crônica, até o xingamento oral exige cuidados, tais como local deserto e olho vivo. Afinal, como saber que não há um gravador ligado ou um desocupado de celular em punho?

Então, só restará a possibilidade restrita de apelar para o foro que, muito adequadamente, é chamado de privilegiado. Pelo menos, enquanto isso não for considerado uma ameaça a algum peculiar estado de direito.

J.J. CAMARGO

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