Musicar poemas
Há pouco, numa aula de música, ouvimos Hildegard von Bingen, Santa Hildegarda, e lemos os seus textos científicos, inclusive a descrição de um orgasmo feminino que termina dizendo, há 800 anos: "e então todas partes que estiveram prontas para se abrir no tempo da menstruação se fecham, do mesmo modo que a força de um homem pode fechar algo em seu punho".
Uma coisa puxa a outra e foi inevitável lembrar, em Santa Hildegarda, a poeta Angélica Freitas e o seu Um Útero É do Tamanho de um Punho. E, já que estávamos numa aula de música, aproveitamos para ler - pulando do medieval para o contemporâneo - aquele poema da Angélica que fala de um violinista segurando um Stradivarius no meio do "grande desastre aéreo de ontem".
Mais tarde, já fora da aula, fui folhear o meu livro Memórias do Pierrô Lunar e parei numa crônica, Canções e Poetas, que fala da fidelidade de dois compositores porto-alegrenses, Bruno Kiefer e Armando Albuquerque, aos seus poetas de escolha. Pois ao comporem canções, um voltou sempre a Carlos Nejar e, o outro, a Augusto Meyer. Compositores de música e seus compositores de palavras.
Minha crônica do livro ficou pensando: "enquanto a Estética do Frio segue em processo e enquanto as canções do passado estão dormentes, devem existir outros poetas à espera de músicos. E devem existir outros músicos à espera de poetas. É um exercício de curiosidade, então, prever o que estes encontros não realizados produzirão, se algum dia a música do presente voltar a encontrar a palavra do presente".
O texto é de 2006 e eu não podia prever o que aconteceu, de lá para cá: uma nova fidelidade de música e poesia, com a música de Vitor Ramil potencializando os versos de Angélica Freitas, as palavras oxigenando os sons. O meu "exercício de curiosidade" de quase 20 anos foi respondido pelo álbum Avenida Angélica e pela parceria Ramil/Freitas, trazendo para hoje as parcerias tão fascinantes de Kiefer e Nejar, Albuquerque e Meyer.
As canções de Vitor Ramil e Angélica Freitas já são outra coisa, mas pertencem à mesma tradição, a de musicar poemas, dando vontade de ouvir mais uma vez as meditações de Armando Albuquerque, lembrando também o centenário de Bruno Kiefer, lado a lado com o violinista que se despenca em Angélica e Vitor. Numa tarde de estudos e coincidências, tudo fez sentido e minha curiosidade de 2006 foi respondida, em música e versos. Pois "eu penso em Béla Bartók, eu penso em Rita Lee"...
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