A discussão é verdadeira. Altero apenas alguns dados para ocultar os participantes reais. Uma pessoa segura uma bolsa cara. Melhor seria dizer: caríssima. A amiga exclama e indaga: - Nossa, sua bolsa vale uns R$ 120 mil! Quanto você paga à sua faxineira?
- Pago o valor de mercado. O salário não é proporcional à renda do contratante. Se assim fosse, a funcionária que limpa a mansão da família Safra deveria receber US$ 70 mil por mês? O salário é fruto de um diálogo com o mercado, com minhas necessidades, com a realidade da funcionária e tem uma certa "lógica?".
- Mas... Você não se sente mal por isso? Há crianças passando fome...
- Sim, e essas crianças ficariam felizes também com o seu celular. Você deixaria de produzir bastante se não tivesse o aparelho. Ele é seu instrumento de trabalho. Graças a ele, você consegue contratar quatro pessoas para a sua casa e 12 para o escritório. Você gera muitos empregos, e as pessoas recebem pelo seu trabalho. Claro: você pode doar todos os móveis, computadores e bolsas. Pode enviá-los para uma área pobre de Bangladesh. Você condenaria aqui várias pessoas à fome, mas salvaria outras na Ásia.
- Sei lá! Mas você e eu estamos crescendo nos nossos negócios. Não seria bom ir aumentando os salários?
- Talvez, se todos concordassem em diminuir quando houvesse queda de receita. Há dois anos, durante a pandemia, perdi 30% da minha renda. Eu poderia chegar à empregada e dizer: "Vamos baixar seu salário?". Ela acharia ruim. Dividir lucros e assumir crises não seria um caminho irracional? Eu a mantive, pagando o mesmo valor, ainda que ela tenha deixado de vir por alguns meses. Faz parte de uma responsabilidade recíproca.
- Você me parece muito objetiva e capitalista. Acho apenas que poderia existir mais justiça social.
- O sistema está dado. Você deve pagar seus impostos previstos, honrar com os compromissos trabalhistas, respeitar as pessoas e oferecer o que é viável. Você é livre para fazer trabalhos voluntários ou doações para entidades assistenciais. Mas... a regra de ouro é nunca abraçar de tal forma o afogado que ele lhe arraste para o fundo. Isso expandiria a pobreza, não a riqueza.
- Porém, doar cestas nunca resolverá a fome.
- Doar minha bolsa também não. Se minha bolsa ou o valor a incomodam, por que você não faz uma artesanal em casa? Você é boa em costura. Isso estimula o criativo e até a sustentabilidade, mas... pode diminuir vagas de empregos. E, sim, pode vender tudo o que possui e dar aos mais necessitados. Você é livre!
- Já refleti. Lá no nosso escritório de advocacia, alguns pareceres custam uma fortuna. O trabalho é feito por muita gente; apenas eu e meu marido recebemos o grosso dos pagamentos, porque somos os proprietários. Sei que essa é a lógica da sociedade. Por vezes, parece que a gente está tirando das pessoas.
- O cliente procura vocês pela fama, rede de relações, capacidade gerada pelos conhecimentos, certeza de qualidade e o peso do seu sobrenome, com notório saber, ou seria por causa do estagiário?
- Ah, com certeza pela gente! - E os advogados que estão lá, assalariados, podem sair e abrir seus próprios escritórios, como vocês, não é?
- Sim, podem. Alguns se tornaram sócios minoritários. Outros fundaram uma empresa. Um foi para o Exterior e prospera. Alguns que ficaram são excelentes e causam aumento de produtividade. Estes nós fomos promovendo, aumentando a participação nos lucros do escritório.
- E outros foram ficando e apresentavam pouca iniciativa. Você nunca ofereceu sociedade a eles, não é?
- Verdade! Mas... sua ideia de meritocracia parece fazer um jogo de cada um por si e "que vença o melhor". Nada mais podemos fazer a não ser aceitar a miséria como um dado pétreo?
- Você pode me acusar de tudo, menos de idealista. Meu mundo é o real, e nossa chance de atingir um paraíso é limitada. Minha ação tem poder cerceado, e o custo de todo "admirável mundo novo" é muito alto. Prefiro reformar e melhorar o que temos, fazer o certo em vez de, em uma tacada, imaginar que o sistema pode ser derrubado hoje e amanhecer melhor, daqui a uma semana. Não acredito nisso. Minha experiência de vida me indica, até hoje, que as rupturas possuem valor muito alto, quase sempre excessivo.
- Sim, você já defendeu sua posição de conservadora não reacionária. Lembro-me da festa lá em casa: você não idealiza o passado, tampouco acredita que todos eram mais felizes. Logo, não é reacionária. Não crê que o paraíso esteja logo à frente e que possa ser atingido rapidamente. Logo, tem pouca identidade com o pensamento tradicional de esquerda. Você acredita que o presente seja uma negociação entre o que recebemos e o que legaremos. Apenas acho que tudo isso é muito teórico, coisa de europeu.
- Sim, a fonte é europeia, mas a esquerda também nasceu na Europa durante a Revolução Francesa. O anarquismo é europeu, o marxismo é europeu, o nacionalismo é europeu etc.
- Assim como essa sua bolsa, né, amiga? Posso pedir emprestada? E você, querida leitora e estimado leitor: qual é a sua esperança sobre bolsas e capitalismo?
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