Agudo momento da consciência
Meu barbeiro, Keliston, 35 anos, morreu de acidente de moto na semana passada. Para não ferir o rosto da saudade, evitei descobrir detalhes da sua colisão com uma carreta na estrada.
Durante cinco anos, ele apareceu em minha casa com a sua malinha preta pesada de equipamentos, pentes e escovas. Keliston aparava a minha barba e desenhava uma palavra diferente toda semana na parte de trás da minha cabeça.
Sua lâmina não tremia, não errava, não cortava: era resoluta. Em nossos encontros, prevalecia a sua educação, seus modos gentis e cordatos. Ele pedia licença para tudo, dizia "obrigado" para tudo. Pelos cuidados comigo, demonstrava gosto de estar exercendo aquele ofício.
Antes de nos despedirmos, ele fazia questão de buscar a vassoura no armário da área de serviço e recolher os fios soltos. Eu esclarecia que não precisava, ele respondia que unicamente terminava o seu trabalho depois da limpeza. Então, eu pegava a pá e me agachava para ajudar.
Éramos vassoura e pazinha. Éramos tesoura e caneta. Pastor evangélico, pai dedicado de quatro filhos, marido devoto, ele enfrentava 37 quilômetros de estrada para ficar 30 minutos ao meu lado.
De repente, num breve assobio, ele desencarnou. Meus cabelos só vão crescer, a falta dele só vai aumentar. Eu me sinto esquisito com a perda. Como se não pudesse mais ser normal. A imagem dele surge quando menos espero. É como se a sua ausência não fosse possível. É como se eu tivesse enlouquecido.
Jamais nos treinamos para não enxergar mais alguém. Nosso movimento é todo ao contrário: registrar nuanças, apresentar-se cada vez mais atento, observar as oscilações de humor e manias, guardar detalhes e mudanças do comportamento. Somos colecionadores de instantes.
Nesse sentido, a morte é antinatural, na contramão dos olhos e do coração. O estoque de imagens para de ser abastecido sem aviso prévio. Ocorre uma interrupção abrupta de acontecimentos daquele afeto, uma suspensão da nossa compulsão fotográfica exercida ao longo da convivência.
Era de se prever que eu entraria em desacordo com a realidade. Não foi a minha dor, no entanto, o que mais me assustou no processo de velório e de enterro, mas ouvir a mulher dele, Sabrina, cabeleireira que dividia o salão, a casa, a família e os sonhos com meu amigo Keliston.
Ela me mandou um áudio agradecendo minhas palavras de carinho nos dias mais sofridos da sua existência. Quando foi explicar quem era na mensagem, ela gaguejou: - Carpinejar, aqui quem fala é Sabrina, esposa de Keliston? Neste momento, ela se corrige: - Esposa não, desculpa, meu Deus, sou viúva de Keliston?
No meio da sua fala, escuto-a desabar em choro. Talvez tenha sido a primeira vez que ela se deu conta de que era viúva, conscientizando-se de que eles não estariam nunca mais juntos.
Regredi no tempo e imaginei Sabrina, após a celebração do altar, dizendo para si mesma "sou esposa", com o sentimento misto de surpresa e de encantamento, adaptando-se à mudança de não mais morar sozinha, levantando a aliança para degustar seu brilho, até acreditar que escolheu e foi escolhida, que definiu o seu par inseparável com a bênção dos pais.
Quando casamos, demoramos para acostumar com o novo estado civil. Agora ela tem que se esforçar para assumir uma outra nomenclatura, outra condição, numa tristeza absolutamente solitária, num fardo atroz que não será mais repartido a dois.
Eu ainda não lhe respondi. Estou procurando força em você, meu leitor.
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