sábado, 1 de outubro de 2016



01 de outubro de 2016 | N° 18649 
CARPINEJAR

Luto televisivo

Hoje entendo perfeitamente a depressão materna com o fim da novela Roque Santeiro em minha adolescência. Ela se calou por semanas, ficava irritada por qualquer casualidade, não conseguia dormir. Perambulava pela casa durante a madrugada com um copo de água na mão.

Foi o nosso período de maiores castigos e xingamentos, ela que sempre foi doce e compreensiva. Mas tinha se viciado naquela história do casal estrambólico Sinhozinho Malta e viúva Porcina.

Experimentou um luto televisivo. Era a morte de seu lazer noturno. Seu programa predileto, após meses de exibição diária, deixava de existir. De repente, sumia. Como ocuparia o seu lugar? Assistir à novela seguinte seria o equivalente a uma traição. Entrava, então, no vazio existencial da abstinência.

Reproduzi a mesma amarga sensação quando terminei a quarta temporada de House of cards. Emendei noites para acompanhar a saga do casal político inescrupuloso Underwood. Em toda fresta do trabalho, pegava o meu computador e avançava na trama. Quantas vezes enganei a minha mulher e permaneci acordado madrugada adentro com fones de ouvido e uma barreira de travesseiros para disfarçar a luminosidade da tela?

Ao encerrar os 52 episódios até hoje filmados, mudei de personalidade. Cai em melancolia profunda. Abriu-se uma cratera entre o desejo e a realidade. Perdi o apetite, não tinha mais vontade de falar, arrastava os sapatos pelos corredores, não rendia no trabalho, desanimei com as crônicas. Foi como uma gripe emocional, uma virose na alma. Andava apático e de olhar paralisado, contínuo, sem comercial. A esposa já projetava consulta psiquiátrica. Os filhos já devolviam as mesadas. Os amigos começaram a se revezar no telefone.

Eu não estava preparado para esperar na fila das estações uma nova temporada. Não elaborei um plano B. Havia uma eternidade pela frente, um futuro árido longe dos meus personagens de estimação.

Não me curei ainda. Sofro uma fissura violenta, semelhante à recaída por cigarro. A minha panaceia é a promiscuidade no Netflix, assistir quatro séries simultaneamente para ocupar o tempo.

Sou orgulhoso como a minha mãe. Não aceito ajuda.

Talvez a minha mãe seja ainda pior, sequer admite que assiste novela. Quando vou visitá-la de noite alega que deixou a tevê ligada.

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