10 de janeiro de 2015 |
N° 18038
CLAUDIA LAITANO
Allons enfants
Você não precisa saber francês,
ter vivido os horrores da II Guerra ou mesmo gostar de filmes antigos para se
arrepiar com a cena de Casablanca (1942) em que os frequentadores do Rick’s
Café erguem-se para cantar A Marselhesa, atendendo à provocação do líder da
resistência Victor Laszlo (Paul Henreid) e abafando, com ardor cívico, a
cantoria dos oficiais nazistas – assim como, simbolicamente, o próprio nazismo,
que seria derrotado pelos Aliados pouco tempo depois da estreia do filme.
Na última quarta-feira, em uma
manifestação em Trafalgar Square, no coração de Londres, cerca de 2 mil pessoas
portando cartazes (“Nous Sommes Charlie”, “Keep Calm and Charlie On”) e
levantando canetas no ar, como espadas, entoaram os versos de A Marselhesa como
um gesto de resistência ao ataque contra a revista de humor Charlie Hebdo.
Em uma semana com inédita
produção de peças gráficas de qualidade sobre um mesmo assunto, hashtags
viralizadas em questão de minutos, Torre Eiffel às escuras e manifestações
espontâneas de solidariedade ao redor do mundo, A Marselhesa de Trafalgar
Square e a linda artilharia de lápis e canetas em punho formaram uma das
imagens mais tocantes.
Isso porque o hino mais conhecido
do mundo não é apenas o ícone de um país, mas a música símbolo de todo um
sistema de pensamento, o Iluminismo, que deu origem ao modelo americano de
democracia, à Revolução Francesa e à civilização ocidental como a conhecemos
hoje. O conjunto de ideias que tomou corpo na França no final do século 18
defendia, basicamente, o homem como medida de todas as coisas e a autonomia do
indivíduo para criticar e desafiar todas as instituições.
As leis deveriam ser aquelas
acordadas entre os homens e não as ditadas pela tradição ou pelo sobrenatural,
mas o novo modelo não excluía a possibilidade da experiência religiosa
individual, apenas retirava a crença do lugar central que ocupava na sociedade.
(O Estado laico, a propósito, é o único que torna possível, no plano ideal, a
pluralidade de crenças e descrenças, sem o domínio autoritário de uma sobre as
outras – platitude que as bancadas religiosas no Brasil nem sempre conseguem
alcançar.)
A independência de pensamento e a
possibilidade de criticar, questionar e mesmo ridicularizar qualquer tipo de
autoridade, política ou religiosa, abriu espaço, entre outras coisas, para a
imprensa livre, a ciência e a democracia moderna. A ideia de que todos os
homens são iguais e de que nossas leis deveriam refletir valores da experiência
humana, e não crenças religiosas, são a base da civilização ocidental –
imperfeita, é verdade, mas “aperfeiçoável”. Como todos os seres humanos.
Em Casablanca, assim como em
Trafalgar Square, A Marselhesa simboliza a resistência contra um sistema muito
pior do que o imperfeito e muitas vezes desigual modelo de democracia
desenvolvido ao longo dos últimos 200 anos no Ocidente. Um modelo em que as
instituições não são sagradas nem intocáveis e onde nenhuma ofensa simbólica é
tão grande que valha o preço de uma vida humana.
Neste momento, no gigantesco
salão do Rick’s Café que é o nosso mundo globalizado e conectado, estamos todos
em pé, cantando A Marselhesa e celebrando os valores que ela representa – sem
esquecer as reflexões humanistas que a II Guerra tornou para sempre
incontornáveis: nenhuma pessoa jamais deveria ser perseguida ou segregada pela
origem étnica, pela cor da pele ou pelas convicções religiosas. Defender os
valores iluministas, sem deixar escorregar parte deles pelo caminho, é o grande
desafio da Europa neste momento.
E de todos aqueles que acreditam
que liberdade, igualdade e fraternidade são ideais pelos quais ainda vale a
pena lutar.
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