quinta-feira, 31 de julho de 2014

CONTARDO CALLIGARIS

O silêncio dos inocentes

Uma cultura pode morrer de sua própria covardia em defender as ideias que ela inventa e promove

O movimento Estado Islâmico (EI) controla uma parte consistente do território que pertencia previamente à Síria e ao Iraque (sei que "consistente" é vago, mas as cidades passam de mão em mão a cada dia). Nesse vasto território, o EI proclamou um califado, e seu líder, em 11 de julho, ordenou a mutilação genital de todas as mulheres entre 11 e 46 anos.

A mutilação genital consiste na ablação do clítoris e, em algumas tradições, de parte dos lábios da vagina. A operação geralmente é feita sem anestesia e sem condições de assepsia. Essa tortura com consequências potencialmente mortais garantiria que as mulheres não sintam (mais) prazer sexual, ou seja, como noticiaram as agências de imprensa (Folha de 25/07), evitaria "a expansão da libertinagem e da imoralidade" no sexo feminino.

Segundo a ONU (Organização das Nações Unidas), a medida do califado pode atingir 4 milhões de mulheres.

Será como em julho de 1994, quando assistimos de longe, indignados e resignados, ao massacre de mais de meio milhão de pessoas da etnia tutsi, em Ruanda?

Será como em 1995 (de novo, em julho), quando assistimos ao massacre de Srebrenica, na Bósnia? Neste caso, um mês depois, o bombardeio dos sérvios-bósnios pela Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) colocou um fim à guerra da Bósnia. Foi tarde para os 8.000 de Srebrenica, mas foi ao menos isso.

Meus furores intervencionistas são raramente abstratos. Há intervenções impossíveis porque é dificílimo tomar partido, e outras que custariam mais vidas do que salvariam. Também me envergonha, na hora de me indignar, o fato de que os que se armariam e arriscariam sua vida seriam outros, mais jovens do que eu.

Mesmo assim, penso que o genocídio em Ruanda, em 1994, poderia ter sido evitado e que o bombardeio das posições dos sérvios-bósnios em 1995 poderia ter acontecido antes, evitando o massacre de Srebrenica.

No caso de Ruanda, foi dito mil vezes que o Ocidente deixou o horror acontecer porque o coração da África está longe, geográfica e culturalmente. Da mesma forma, foi dito que a Otan interveio na Bósnia por se tratar de um horror "em casa", na Europa.

Mas a intervenção na Bósnia tornou-se possível e "necessária" também por uma outra razão, um pouco mais complexa.

Na guerra da Bósnia, as grandes vítimas eram os bósnios muçulmanos, ameaçados de extermínio pelos sérvios-bósnios (ortodoxos). Atrás de qualquer consideração geopolítica, os membros europeus da Otan (sobretudo Alemanha, França e Inglaterra) podiam enxergar, no ódio dos sérvios-bósnios, uma caricatura do preconceito de suas populações contra os muçulmanos imigrantes.

Ou seja, talvez a gente seja especialmente motivado a intervir contra quem pratica horrores dos quais nós mesmos receamos ser capazes. É policiando os outros que a gente luta contra nossos próprios demônios.

Se a ordem do califado me indigna tanto é porque reconheço a sua estupidez: ela é a mesma que, apenas 200 anos atrás, levava psiquiatras europeus a cauterizar com ferro quente o clítoris de meninas que se masturbavam com uma frequência que pais e padres achavam excessiva.

Houve uma época (recente --e nem sei se acabou) em que o desejo feminino nos fazia horror, e a gente estava disposto a qualquer coisa para silenciá-lo. É esse passado que nos daria o direito de intervir.

Não se trata de querer abolir uma diversidade cultural. Certamente há mulheres, no califado, dispostas a ser mutiladas para continuar pertencendo plenamente à cultura na qual elas vivem. Mas o que acontecerá conosco se escutarmos os gritos das que não concordam e deixarmos que se esgotem, até que reine o silêncio dos inocentes sacrificados?

Em Veneza, no Teatro La Fenice, três semanas atrás, assisti a uma apresentação (única) de "Hotel Europa", de Bernard-Henri Lévy (publicado pela editora Marsilio numa edição bilíngue, com textos em italiano e francês). É o monólogo de um intelectual que, num hotel de Sarajevo, prepara uma conferência impossível sobre a Europa e seus valores. Lévy foi marcado pela sua presença na Bósnia durante os anos da guerra e acredita na necessidade moral de intervir nos horrores da casa dos outros.

Concordo ou não, tanto faz; de qualquer forma, saí da peça com a convicção de que uma cultura pode morrer de sua própria covardia em defender as ideias que ela inventa e promove. E nossa cultura é ameaçada por esse destino: ela tem, ao mesmo tempo, um repertório fantástico de ideias e uma grande timidez na hora defendê-las --até porque uma dessas ideias é que cada um deve ser livre de pensar como quer.

ccalligari@uol.com.br


CLÓVIS ROSSI

Gaza envenena Israel

A reação ao Hamas tem o apoio total dos israelenses, mas leva a uma crescente radicalização interna

É razoável supor que a quase totalidade dos judeus de Israel ficou furiosa com a posição do governo brasileiro de condenar a reação "desproporcional" de Israel aos ataques do Hamas.

É a conclusão inescapável de três pesquisas sucessivas do Instituto Democracia de Israel, feitas nos dias 14, 16/17 e 23. Mostram apoio à operação em Gaza de, respectivamente, 96%, 92% e 97% dos pesquisados (não foram ouvidos os israelenses árabes).

Pior: na média das três pesquisas, 45% acham que não foi usado suficiente poder de fogo, exatamente o contrário do que pensa o governo brasileiro. Com este concordam apenas pouco mais de 3% dos pesquisados.

Fica evidente que é incorreto supor que a ação de Israel se deve ao predomínio da direita e da extrema direita no governo que conduz a guerra. Binyamin Netanyahu é, indiscutivelmente, de direita, mas está agindo de acordo com o que pensa a esmagadora maioria do eleitorado --o seu eleitorado e o de todos os demais partidos, de direita, de centro ou de esquerda.

Pesquisa mais recente, divulgada domingo (27) pelo Canal 10, mostra impressionantes 89% dos consultados favoráveis a que a operação em curso resulte na derrubada do governo do Hamas em Gaza.

Se só na terça morreram cem palestinos, e ao menos 15 na quarta em apenas outra escola de Gaza, não é preciso muita ciência para deduzir o banho de sangue que custaria aprofundar a operação "Margem Protetora" até acabar com o Hamas.

Há, em Israel, quem diga que não adiantaria. O escritor israelense Etgar Keret, por exemplo, em artigo para "El País", diz que "ainda que eliminem a todos e a cada um dos combatentes do Hamas, alguém crê sinceramente que a aspiração dos palestinos à independência nacional vai desaparecer com eles?".

Reforça um ex-chanceler israelense, Shlomo Ben-Ami: "Nenhuma es­tra­tégia na­cio­nal se­rá crível enquanto não se reconhecer que a continuidade do conflito de­bi­li­ta pe­ri­go­sa­men­te as ba­ses mo­ra­is de Is­rael e sua po­si­ção in­ter­na­cio­nal".

De fato, a radicalização da opinião pública está levando a um grau de intolerância em que "qualquer opinião --em especial qualquer opinião que não fomente o uso da força e a perda de vidas de soldados-- é nada menos que um intento de destruir Israel", escreve Keret.

O escritor está assustado com a repressão, inclusive com ameaças de morte, a quem discorde da posição majoritária --o que é claramente antidemocrático e, por extensão, cai na frase de Ben-Ami, sobre o debilitamento das bases morais de Israel.

A propósito: o "Times of Israel" divulgou vídeo em que manifestantes de extrema-direita festejam, inacreditavelmente, a morte de crianças em Gaza, aos gritos de "não haverá aula amanhã, [porque] já não há crianças em Gaza". Dá náuseas.

Pode-se sempre alegar que a extrema-direita é assim mesmo. O problema, para qualquer futuro processo de paz, se e quando for retomado, é que a extrema-direita em Israel só faz crescer e crescer o que aumenta o volume do grito "morte aos árabes".


crossi@uol.com.br
ELIANE CANTANHÊDE

Profecias e realidade

BRASÍLIA - Ou a presidente Dilma Rousseff deu azar, ou houve uma conspiração. Enquanto ela dizia que a economia vai muito bem, obrigada, e fazia um apelo na CNI para que empresários não se deixem levar por "profecias pessimistas", novas notícias que minam esse discurso viravam manchetes nos jornais online.

Logo ontem, quando Dilma, Aécio Neves e Eduardo Campos faziam contorcionismos para impressionar bem o empresariado, veio a informação de que a recuperação econômica dos EUA está sendo mais forte do que previsto.

A potência cresceu a uma taxa anual de 4% no segundo trimestre, o que pode levar o crescimento a 2% no ano. A expectativa para o Brasil é em torno de mísero 1%.

No discurso de Dilma, o Brasil amarga esse pibinho por causa das potências, das influências externas, da crise de 2008 e, afinal, gente, porque todo mundo está crescendo pouquinho mesmo. A novidade dos EUA mostra que não é bem assim. E isso, claro, embaralha os pretextos da presidente candidata para os resultados pífios da economia. É preciso arranjar outros pretextos rapidinho.

E foi justamente durante o discurso de Dilma na CNI que o Tesouro Nacional --veja bem, que é do governo, chefiado pela presidente-- deu uma outra má notícia, pior ainda para ela e para o empresariado: o saldo entre receitas e despesas do governo federal no primeiro semestre foi o pior dos últimos 14 anos. Ou seja, com crescimento tão raquítico, a arrecadação cai; com o ano eleitoral, a gastança pública sobe.

Daí que o governo promete, promete, mas não tem como cumprir o compromisso de poupar R$ 80,8 bilhões em 2014, simplesmente porque, na metade do ano, só conseguiu atingir 21% dessa meta. E não porque seja bonzinho, porque sacrifique índices para favorecer os pobres da nação, mas porque não está gerindo adequadamente a economia, nem os gastos.


O empresário sabe distinguir "profecia pessimista" de constatação.

31 de julho de 2014 | N° 17876
ARTIGOS - ALFREDO MARCOLIN PERINGER*

É A ECONOMIA, IDIOTA

Em 1991, na bem- sucedida campanha eleitoral americana de Bill Clinton contra George H. W. Bush, então presidente dos Estados Unidos e candidato à reeleição, o seu estrategista, James Carville, apresentou três temas centrais de cunho político mercadológico para o seu pessoal trabalhar: a) mudança versus mais do mesmo; b) não se esqueça do sistema de saúde; e c) é a economia, idiota.

Na época, o prestígio do presidente Bush dentro da sociedade americana era alto. Havia ganhado a Guerra do Golfo, libertado o Kuweit e os Emirados Árabes Unidos da invasão iraquiana e feito isso num curto período de tempo (02/08/1990 a 28/02/1991) e com baixa mortalidade de soldados americanos.

Não havia maneira de a sua organização política, o Partido Republicano, deixar de indicá-lo para concorrer à Presidência dos Estados Unidos, fato que ocorreu inclusive com entusiasmo, na pressuposição, é claro, de que carregaria o seu prestígio às urnas, vencendo o pleito.

Ledo engano! Tinha uma pedra no meio do caminho. A recessão, que iniciou no terceiro trimestre de 1990, avançou no ano de 1991, início da campanha, abalando sobremaneira a confiança dos americanos, principalmente nos seus governantes. Nem poderia ser diferente: as estatísticas do Ministério do Trabalho mostravam cerca de 1,6 milhão de trabalhadores desempregados no país.

Carville, um excelente estrategista, soube aproveitar politicamente a queda da atividade produtiva americana. Deixou de lado as demais táticas mercadológicas, passando a trabalhar apenas com o bordão “it’s the economy, stupid”, forma que sintetizava muito bem a depressiva situação econômica do país.

Embora fosse uma estratégia para o consumo interno do seu grupo de trabalho, o lema caiu no gosto da população, ganhando logo um lugar nos anais da história político-eleitoral americana, sendo usado até hoje por mercadologistas mundo afora, principalmente em países às voltas com problemas de desemprego e inflação, comum hoje em diversas partes do mundo.

*Economista



31 de julho de 2014 | N° 17876
CARLOS GERBASE

QUEM PERDOA POLANSKI?

Os Estados Unidos não perdoam Roman Polanski. Ele não pode entrar no país desde 1977, quando foi acusado pelo estupro de Samantha Geimer, 13 anos, numa festa na casa de Jack Nicholson, e fugiu para a França. Polanski, então com 43 anos, admitiu que deu champanha e drogas para a menina, mas afirmou que o sexo foi consensual. As autoridades americanas não engoliram a desculpa – que, convenhamos, é muito frágil – e ainda querem prendê-lo em definitivo. No ano passado, a própria Samantha afirmou, durante o lançamento de seu livro de memórias, que perdoou o cineasta “há muito tempo”.

Os filmes de Polanski, contudo, não precisam de passaporte, e há uma distinção nos EUA entre banir o artista e impedir sua obra de circular. Aliás, os americanos sempre foram muito práticos a esse respeito.

Quando, no começo dos anos 1940, precisaram aprender rapidamente a fazer filmes de propaganda de guerra, o general George Marshall chamou Frank Capra e mostrou para ele uma cópia do proibido O Triunfo da Vontade (1935), de Leni Riefensthal, documentário encomendado por Hitler para mostrar a força do nazismo. Era só copiar direitinho. Esta “adaptação” virou a bem sucedida série de cinejornais Why We Fight.

O mais recente filme de Polanski chama-se Venus in Fur (A Pele de Vênus, no Brasil). É uma adaptação para o cinema da peça de David Ives, por sua vez baseada na obra de Sacher-Masoch, escrita em 1870. Uma cópia da cópia, coisa bastante comum desde a Grécia clássica. A grande questão é o talento de quem copia. Polanski, mesmo banido do território norte-americano, ainda consegue fazer triunfar sua vontade e refletir sobre a sua própria existência, enquanto homem e artista. Essa é a grande qualidade do filme, que se soma às atuações fantásticas de Emmanuelle Seigner e Mathieu Amalric.

Polanski nos faz pensar na relação de dominação entre os gêneros masculino e feminino. A trama nos apresenta uma mulher aparentemente frágil e atrapalhada, que aos poucos vai mostrando sua força. As referências ao estupro da vida real são sutis, mas suficientes para quem acompanha a trajetória do cineasta. Venus in Fur é um dramático mea-culpa de Polanski, que tem seu clímax com o inesperado discurso feminista radical inspirado pela peça As Bacantes, de Eurípedes.


Nesse tempo de falência das grandes narrativas, em que o marxismo e a psicanálise buscam desesperadamente manter algum espaço na explicação do mundo, o brado das adoradoras de Dionísio ainda se mantém poderoso e revelador. E esse brado é colocado na tela por Polanski, um homem que estuprou uma menina de 13 anos. A menina o perdoou. Eu também. E você, cara leitora?

31 de julho de 2014 | N° 17876
PAULO SANT’ANA

Exame de sangue

Domingo foi meu dia de calvário, que se sucede de 90 em 90 dias. Porque era meu dia de tirar sangue para nortear os diversos exames laboratoriais que vão me nortear.

Fui ao Laboratório Weinmann, seção da Avenida Nilo Peçanha.

Cumpre dizer que sou daqueles tantos que se aterrorizam com a cravada da agulha de injeção para sugar o sangue para exame.

Já chego pedindo que me concedam a mais perita de todas as enfermeiras.

Pois no domingo, para minha alegria, destacaram para tirar meu sangue uma extraordinária prospectadora. Ela foi olhar a região do meu braço onde injetam a agulha. É preciso dizer que a minha veia é invisível a olho nu, o que deve dificultar sua localização.

Pois bem, a enfermeira que me designaram é tão perita que auscultou delicadamente meu braço e de imediato localizou a veia.

Eu me surpreendi, e ela, firme e gentilmente, me disse: “É aqui!”.

A seguir, esgoelou meu braço com aquela borrachinha e mais de imediato ainda foi puxando meu sangue. Como tenho várias investigações a fazer em meu sangue, ela foi sucedendo junto à agulha diversos tubos de vidro em que iriam ser separados e classificados os campos de coleta (ou será colheita?)

Feito isso, tirou a agulha e fechou com um esparadrapo o furo feito. Uma maravilha de sucção, nem doeu a agulha penetrando minha pele e minha veia.

Maravilha!

É preciso notar que, em outras vezes, a enfermeira que me designam nem enxerga ou sente minha veia ao apalpá-la e vai furá-la no escuro, na intuição. E que muitas vezes as enfermeiras escarafuncham meu braço à procura da veia e, sem encontrá-la, furam diversas vezes minha pele naquele local.

É uma tortura indizível, e por isso é que o meu dia de tirar o sangue torna-se aterrorizante.

No domingo, não. Parecia que eu estava bebendo uma Coca-Cola, quase um prazer, não fosse o medo que me dominava.

Estava pronto, só faltava agora o exame de urina, mas este tem só uma suave dificuldade: a espera do momento da urina desembocar da bexiga na uretra fornecedora.

Demoraram-se uns cinco minutos e veio a urina.

Tudo legal no domingo que pensei podia ser uma tortura.

Deus proteja para sempre a genial enfermeira que me injetou ontem a agulha.


Um domingo que deveria ser de agruras acabou se tornando um dia de amenas sensações.

31 de julho de 2014 | N° 17876
L.F. VERISSIMO

Vida de cinema

Os filmes que víamos antigamente não nos prepararam para a vida. Em alguns casos, continuam nos iludindo. Por exemplo: briga de socos. Entre as convenções do cinema que persistem até hoje está a de que socos na cara produzem um som que na vida real nunca se ouviu.

O choque de punho contra rosto fazia estrago nos rostos – ou não fazia, eram comuns lutas em que os brigões quase se matavam a murros terminarem sem nenhuma marca nos rostos –, mas poupava os punhos. E como sabe quem, mal informado pelo cinema, entrou numa briga a socos, o punho quando acerta o alvo sofre tanto quanto o alvo.

No cinema de antigamente, você já sabia: quando alguém tossia, era porque iria morrer em pouco tempo. Tosse nunca significava apenas algo preso na garganta ou uma gripe passageira – era morte certa. Quando um casal se beijava apaixonadamente e em seguida desaparecia da tela era sinal de que tinha se deitado. E depois, não falhava: a mulher aparecia grávida.

Nunca se ficava sabendo o que acontecia, exatamente, depois que o casal desaparecia da tela, a não ser que o filme fosse francês. Pode-se mesmo dizer que o começo da mudança do cinema americano começou na primeira vez em que a câmera acompanhou a descida do casal e mostrou o que eles faziam deitados. Depois desse momento revolucionário, não demoraria até aparecerem o beijo de língua e o seio de fora. E chegarmos ao cinema americano de hoje, em que, de cada duas palavras ditas, uma é “fucking”.

Se a vida fosse como o cinema nos dizia, nunca faltaria bala nas nossas pistolas ou gelo no balde para o nosso uísque quando chegássemos em casa. E, sempre que tivéssemos de sair às pressas de um restaurante, atiraríamos dinheiro em cima da mesa sem precisar contá-lo e sem esperar que o garçom trouxesse a nota.


Seria uma vida mais simples, a cores ou em preto e branco, interrompida a intervalos por números musicais em que cantaríamos acompanhados por violinos invisíveis, e quando dançássemos com nossas namoradas seria como se tivéssemos ensaiado durante semanas, e não erraríamos um passo, e seríamos felizes até the end.

quarta-feira, 30 de julho de 2014


Uma História Bonita e Feliz, por Silvio Brito


Silvio Brito - Uma história bonita e feliz de uma terra tão linda!


Arnaldo Jabor - 30/07/2014

MEMÓRIAS DO FUTURO

Estou na clínica especial do Nada aqui neste ano remoto do futuro. Futuro de quê? Futuro de um futuro que o Brasil esperava há vários séculos. Essas clínicas são chamadas hoje de 'zonas de esquecimento'; viraram 'hype' há mais de um século e hoje abundam. Os sujeitos entram para perder todos os sentidos. 

Fica apenas a memória que, aos poucos, sem ajuda do tato, gosto, cheiro, visão, e audição, vai se transformando numa leve fonte de murmúrios, em lapsos de visões, em tênue brilho de lembranças e, depois, o silêncio do nada. Muitas clínicas são arapucas e as mais baratas apenas jogam os pacientes numas salas vazias e deixam-nos na mistura de restos de comida e excrementos. Ninguém reclama. Mas, eu vivo na melhor: "Le Néant", que as famílias visitam para verificar o tratamento - é impecável no trato dos corpos sorridentes, murchos e mudos.

Hoje, inexplicavelmente, me encontro na rua com sol batendo em meus olhos e volta a mim uma enxurrada de memórias que eu sempre evitara. Como saí? Em que ano estou? Minha lembrança mais antiga jaz no deserto, quando o Califado Islâmico tomou conta do Oriente Médio, chegando até as bordas de Israel-Palestina, já considerada 'área insolúvel' e que virou parque temático. Muitas terras viraram temáticas também: a desolação de Nueva Iork, depois das nuvens de 'antrax' na Broadway, o Buraco Iraque, depois da bomba do ex-Paquistão - hoje Talibânia - e o deserto de Tokyorama, província da China...

Mas, vou me ater às memórias do Brasil. Sei que há muitos anos o futuro do País se delineou. Foi logo depois da reeleição de uma mulher... Esqueço-lhe o nome... Sei que, depois, o famoso Lula sucedeu-a em 2018, continuando em 2022, criando uma dinastia de si mesmo, reeleito em vários mandatos, até 2034, quando ele já não falava mais e tinha sido mumificado num carro móvel de vidro que desfilava entre a multidão de fiéis ajoelhados. 

A maioria do povo semianalfabeto celebrava a realização do projeto do seu partido, uma espécie de populismo pós-moderno (como chamavam) feito de pedaços de getulismo, chavismo e outras religiões. Quando se iniciou a decomposição, seu corpo foi entronizado no Museu Bolívar, um palácio de mármore vermelho desenhado por Oscar Niemeyer, tendo como curador Gilberto Carvalho, 108.

Nesta época, o velho Brasil tinha renascido, como rabo de lagarto. Voltara a correção monetária sob uma inflação de 2.200%, um flashback do período Collor, agora representado por seu neto na grande aliança ainda presidida por Sarney, 117, que visava a unir partidos no programa nacional de "decrescimento", já que a democracia se revelara um antigo sonho grego impossível. Todo o projeto do 'lulismo' tinha dado frutos, depois de tantos anos no poder. "Podres poderes!" - rosnavam alguns poucos inimigos, urubus complexados. Tinha-se atingido o sonho glorioso de socialismo 'puro', onde só havia o Estado sem sociedade em volta. Era assim.

O MST tinha finalmente desmontado a maldita agroindústria, as manifestações de junho viraram uma data popular, como festas juninas animadas por 'black blocs', considerados agora 'guarda revolucionária'; a Imprensa tinha acabado, graças à proibição de papel, enquanto ex-jornalistas gritavam nas ruas e distribuíam panfletos mimeografados. 

Foi nessa fase que houve o Segundo Crash da Bolsa de Nueva Iork, entre nuvens de suicidas e filas de desempregados. 

Aqui, foi uma surpresa. O Brasil quebrou e nada aconteceu. Houve, claro, legiões de famintos atacando os supermercados, mas logo ficou claro que a miséria é autorregulável. Muito simples: a fome diminui a população, dado benéfico para a incrível falta de comida, provocada pela decisão do governo de jamais cortar gastos fiscais. Nossos aviões e navios passaram a ser confiscados regularmente pelos países do Império Neoliberal, o que foi bom para desonerar gastos de manutenção. 

Foi então que se começou a falar em um novo lema: "Ordem sem Progresso", no seio de um novo movimento de salvação nacional: o "Recua Brasil!". Entendêramos, finalmente, que o Brasil é um 'acochambramento' secular e que isso não é um defeito, é nossa grandeza fabricada por séculos de escravismo, de burocracia e de corrupção endêmica. 

A nova 'república' proclamava: 'Vamos assumir nosso atraso, chega de progresso!'. Foi outro grande alívio o fim da angústia de progresso que oprimia os brasileiros: a Paz é a desistência dos sonhos de felicidade.

Daí, veio o movimento "Desiste Brasil", organizando o antigo caos em ilhas, em zonas de atraso. Um dos sucessos foi o PEP, "Plano de Extermínio de Periferias". No início, alguns humanistas protestaram, mas, depois, se acostumaram com o fechamento das favelas com muros de concreto, como em Gaza-Auschwitz. 

Outro grande programa foi o Procu (Projeto de Criminalidade Unificada), que mapeou as máfias todas, a evangélica, a ruralista, hospitalar, a de traficantes, formando um arquipélago de áreas exclusivas com regras de matança mais controláveis. Sem falar em iniciativas de vanguarda moral como a Coput (Cooperativa de Prostituição Infantil), que organizou as meninas de rua e incentivou o turismo sexual de que tanto dependemos. 

Isso, além do Procrack e do Promerd (cagadas genéricas) e a Prolim (venda de liminares 'a priori'). Criou-se o 'Orçamento Espoliativo', que os congressistas adoraram, com sete novos necrotérios em Alagoas e nove clínicas essenciais de cirurgia plástica no Piauí, de onde veio também a bela ideia da 'Comunidade Sossegada', que distribui Lexotans aos retirantes da seca. 

Mas foi aí que comecei a tremer. Olhava os outros do meu canto: pareciam tão felizes... Sim, mas, de vez em quando, eles entravam num choro meloso, um uivo desesperado como as sirenes que circulavam em Nueva Iork, no século 21. Meu terror foi aumentando. Eu estava só, mas via o repulsivo Futuro brasileiro, preparado por séculos de atraso. Corri de volta à minha 'zona de esquecimento', a "Le Néant", mergulhei no silêncio dos cinco sentidos e cego, surdo e mudo, pude finalmente descansar no nada.


30 de julho de 2014 | N° 17875
MARTHA MEDEIROS

Uma pequena joia

Não sei se é de família ou hábito apenas da minha mãe, só sei que, entre nós, qualquer preciosidade é chamada de joia. Pergunto para minha mãe sobre um filme ou sobre um lugar que ela conheceu, e se ela responde que é bonito é porque é bonito, se responde que é interessante é porque é interessante, mas quando ela diz “é uma joia”, logo me sento e me disponho a ouvir os detalhes.

E ela não diz joia referindo-se àquela gíria que não se usa mais. Se ela diz que é uma joia, é algo especial, em que se deve prestar atenção. E se ela diz: “É uma pequena joia”, aí é porque a coisa é grandiosa mesmo. Em casa sempre rezamos pela cartilha do “menos é mais”, preferindo as pequenas joias em detrimento das ostentosas. Um discreto ponto de luz, um brilhante comedido, algo que reina sem pompa, o clássico que não se pavoneia, a elegância que não é extravagante: isso.

Quem já leu o italiano Alessandro Baricco sabe que ele se adapta bem à descrição de valor que fiz acima. Já havia lido dois ótimos livros dele e recentemente estive com o terceiro em mãos, que se chama Mr. Gwin. Um livro com um nome próprio como título é sempre um enigma. Quem seria Mr. Gwin? O que faz? Qual o seu conflito? Para que time torce? Por que devo parar minha vida rotineira e apressada para dedicar algumas horas a esse fulano?

Mr. Gwin é realmente um fulano até que se abra a primeira página, mas Alessandro Baricco é autor respeitado. Então, mais em consideração ao prestígio do autor do que àquele ilustre Mr. Gwin desconhecido, abri o livro.

Quando terminei, pensei nela. Já sabia como recomendá-lo: mãe, é uma pequena joia.

Autêntico, poético, magistralmente bem escrito. Curto, sintético, nenhuma palavra falta, nenhuma palavra sobra. Original sem ser exibicionista, contido sem ser humilde.

Uma história meio estranha, mas daquelas estranhezas que se infiltram na alma, que fazem a gente perder a insistência de buscar realidades comprovadas: a troco de quê devemos acreditar apenas naquilo que já vimos antes? Qualquer história é uma história, e é a ela que o livro presta reverência, mais do que aos personagens, ainda que eles brilhem também.

É uma pequena joia porque é pequena no tamanho, mas comove por sua literatura tão bem lapidada. Porque não é um livro como tantos, tem uma singularidade que o destaca. Ou talvez seja uma pequena joia apenas porque gostei dele, mesmo que ninguém mais goste – aquilo de que gostamos é sempre significativo a despeito do que pensem os outros.

Pode ser que você não encontre nada de relevante em Mr. Gwin, caso aventure-se a lê-lo. O que para mim foi percebido como uma pequena joia talvez lhe pareça uma grande porcaria. Assim é a vida, povoada por opiniões diversas. Mas que ao menos essa conversa toda tenha feito você questionar o que significa uma pequena joia em seu próprio conceito. Porque, entre tantas bugigangas que nos cercam, temos o dever de eleger algumas raridades.



30 de julho de 2014 | N° 17875
ARTIGO - ROBERTO FREDA*

COMPETÊNCIA NA GESTÃO PÚBLICA

Palhaços são engraçados. Fazem rir. Transitam e habitam no lúdico mundo infantil. Seria no mínimo fora de contexto imaginá-los postulando um cargo público. Mas, por favor, sem preconceito. Afinal, quem tem competência que se habilite.

E aqui, justamente, é que temos uma questão interessante. Quem de nós iria entrar em um avião cujo piloto não tivesse feito todos os cursos preparatórios e tivesse sido adequadamente avaliado por examinadores igualmente qualificados? Quem iria a um médico que não tivesse sequer passado pela porta de uma universidade? 

Quem entraria em um escritório de advocacia sem ter certeza de que o advogado conhece o tema das leis e seus meandros? Quem contrataria um engenheiro sem a mínima formação universitária para comandar a execução de uma obra civil de alta complexidade? Todas essas ocupações necessitam de formação profunda e extensa, para se desempenhar, legalmente, a atividade profissional.

Portanto, cabe a pergunta: qual a formação técnica formal que se exige de um postulante a ocupar um cargo público? Por que razão outras atividades seriam diferentes do gestor público? Como querer que alguém que não tem a mínima noção administrativa seja vereador? O que podemos, de fato, esperar? Gerir quantias astronômicas de dinheiro, fazer leis que impactam diretamente o cidadão comum, definir os rumos de cidades, Estados e do país inteiro, não exigiria um preparo técnico formal mínimo?

E que mecanismos seriam empregados para qualificá-los? Não há mais espaço para leniência, passividade e resignação. Da maneira como estão as coisas, qualquer excêntrico despreparado, semialfabetizado e que se apresente como um bufão histriônico durante o horário eleitoral pode ser eleito para alguma função pública executiva ou legislativa.

Sem qualificação e desconhecendo o métier, prestará um desserviço enorme a significativa parcela da sociedade. Esse servidor público é intolerável. O cidadão brasileiro não o merece. Ele não faz bem algum. Não melhora a vida da coletividade. Contudo, indivíduos assim continuam sendo eleitos Brasil afora.

E, nisso, não há graça alguma.
  

*MÉDICO

30 de julho de 2014 | N° 17875
PAULO SANT’ANA

Bem-vindo, Felipão!

O bom filho à casa torna, está de volta Felipão ao Grêmio depois de quase 20 anos.

E volta Felipão ao Grêmio, que precisa dele para melhorar sua situação no Brasileirão.

Interessante é que Felipão agora também precisa do Grêmio para melhorar sua imagem de treinador que sofreu sete gols da Alemanha na Copa do Mundo.

E se um precisa do outro, então que se ajudem entre si.

Fábio Koff não deve ter vacilado quando perdeu o treinador Enderson Moreira: “Vou buscar o Felipão”.

Foi buscar Felipão, não muito confiante de que ele aceitaria o desafio, mas ele aceitou.

Então está vindo o Felipão, e incrivelmente noticiou-se ontem que virá junto com ele o Murtosa, o seu talismã. E eu não acredito que talismã do tamanho do Murtosa vá sofrer duas quedas seguidas.

Agora eu levo fé no Murtosa!

Fábio Koff estava numa bananosa para escolher o novo treinador: Tite não quis vir, não havia mais rigorosamente ninguém para preencher a vaga maldita.

Parece que estou vendo Felipão ao receber o convite de Koff: “Pelo amor de Deus, presidente, uma mão lava a outra, vamos segurar juntos este foguete, não é a primeira vez que marchamos juntos”.

O “marchamos” escrito acima não quer dizer “perdemos”, e sim “caminhamos”.

E também é preciso dizer que um time como o Grêmio, que perde para o lanterna Coritiba dentro da Arena, está desesperado, agarra-se agora a Felipão, precisando de socorro.

Como o Felipão também necessita de socorro – saiu avariadíssimo da Copa do Mundo –, os dois se unem numa missão de flagelados.

Pode ser que esteja nisso e sejam bem-sucedidos.


Quem apostava que eu, nesta coluna de hoje, fosse bombardear esta solução de Fábio Koff escolhendo Felipão se enganou redondamente. Sou bobo, mas sou bobo antigo: confio em Felipão, ainda mais que agora, no dia 10 do mês que vem, haverá um Gre-Nal no Beira-Rio, ocasião talvez certa para que o Grêmio parta para a remissão dos seus pecados e atinja a glória terrena de que tanto necessita.

30 de julho de 2014 | N° 17875
FÁBIO PRIKLADNICKI

A PERMANÊNCIA DO ÁLBUM

Em entrevista a meu colega Gustavo Brigatti, citada em uma reportagem publicada na semana passada, o jornalista Mick Wall sugeriu que nos encaminhamos para a morte do disco como conceito: “O formato físico já não existe mais, não temos lado A e lado B. Então, por que a música precisa continuar a ser vendida dessa forma?”

Segundo dados de 2013, os formatos físicos ainda são a maior parte da receita da indústria fonográfica (51,4%), mas as vendas digitais subiram 4,3%, enquanto o faturamento de serviços por assinatura, como Deezer e Spotify, aumentou 51,3%. Números impressionantes.

Mesmo assim, não tenho certeza sobre o fim do álbum no mundo digital. Tenho ouvido grandes trabalhos nesse formato. Entre os estrangeiros, Reflektor (Arcade Fire), Modern Vampires of the City (Vampire Weekend) e Everyday Robots (Damon Albarn); entre os brasileiros, Abraçaço (Caetano Veloso), Antes que Tu Conte Outra (Apanhador Só) e Promessa (Quinteto Canjerana, grupo de música instrumental gaúcha). Isso sem falar nos novos CDs – sim, CDs – de música clássica que chegam à redação do jornal.

Sabemos que singles vendem mais do que discos. Trata-se de uma questão econômica: são mais baratos. Um fã da estrela pop sul-coreana Psy não tem por que gastar dinheiro em um pacote de 10 ou 12 faixas se quer escutar apenas Gangnam Style. Em contrapartida, as vendas de vinis, mídia do álbum por excelência, aumentaram 32% nos EUA e 101% no Reino Unido em 2013, com relação ao ano anterior.

Nos últimos cinco anos, o mercado de LPs no Reino Unido cresceu 270%, indicando uma clara tendência. É um fenômeno de nicho? Certamente. Mas não devemos jamais desprezá-lo. Essa minoria aponta um fenômeno qualitativo: sim, há um público exigente que deseja ouvir um trabalho sólido do início ao fim, assim como há pessoas que ainda leem romances.

Aí está a questão: seja em mídia física ou digital, o álbum e os outros tipos de pacote seguirão coexistindo, cada um servindo a um propósito.

Os formatos curtos (single e EP) serão usados por artistas de carreira comercial (como Paula Fernandes) e por nomes experientes que já não têm o mesmo fôlego criativo do passado (caso dos Rolling Stones). Já o conceito de disco seguirá como o preferido de artistas com trabalho inovador (Arcade Fire, Damon Albarn, Beck) e de mestres ainda em plena forma (David Bowie, Morrissey, Caetano e Chico).


Haverá exceções? Certamente. Mas acho que é mais ou menos por aí.

terça-feira, 29 de julho de 2014


29 de julho de 2014 | N° 17874
FABRÍCIO CARPINEJAR

A janela adesivada de minha adolescência

Visitei a casa do meu passado onde mora a mãe.

Sempre que entro no meu quarto é como se regredisse no tempo.

Os móveis do jeito que deixei, a estante com os livros de Castañeda e Hermann Hesse, as gavetas com cartas e fotos de amores antigos, os quadros de Brecht e Che Guevara.

Fui abrir as janelas para tirar o cheiro de guardado de décadas e permitir o sol entrar. Ao pentear as cortinas ao meio, eu me dei conta de que não dava para ver nada.

Lembrei que, como adolescente em minha época, adesivei todo o vidro.

Participei da febre e da moda entre os jovens dos anos 80: colar adesivos de lojas, de rádios e camisetas, sorteados em promoções.

A vidraça inteira coberta de propaganda. Não havia nenhuma frincha para escapar o olhar ao pátio.

A vidraça abarrotada como uniforme de piloto de Fórmula-1.

A vidraça cheia como um álbum de figurinhas gigante.

A vidraça pichada de slogans e apelos comerciais.

Não faz muito sentido hoje, mas traduzia uma das primeiras demonstrações de emancipação adulta.

Afrontávamos a estrutura dominante, careta e organizada da família.

Como não contávamos com o direito de escolher a cama, a escrivaninha, a colcha e o armário, partíamos para personalizá-los. Ou seja, estragá-los com nossa desobediência.

Os pais reclamavam de nossa mania. Para eles, significava lesar a conservação dos espaços e impedir a limpeza.

Nem havia mesmo como tirar depois. Ficava eternamente na película com sua cola aderente, grudenta, que só esponja de aço seria capaz de remover.

Pôr adesivo tinha o mesmo peso de uma tatuagem e um piercing. Uma transgressão, uma clara discordância doméstica, sinal de que crescíamos e que desejávamos nossa independência, nosso caos, nossa bagunça, expor as nossas preferências. Realizávamos escondidos, distanciados da censura dos mais velhos.

Entre os colegas de escola, disputava os decalques. Se recebia um novo, de formato diferente, já festejava e esnobava diante da turma nos grupos de estudo.

Os mais chinelos eram os de postos de gasolina, os mais venerados eram os de jeans com frases de efeito: “Liberdade é uma calça velha azul e desbotada, que você pode usar do jeito que quiser”.

A janela adesivada ilustrava o isolamento do adolescente, que cria um forte em seu quarto, uma trincheira de seus gostos, apartando-se cada vez mais do resto da residência até sair em definitivo.


Explicava o quanto vivíamos para dentro, em nossos devaneios. A paisagem não existia, unicamente nossas ideias, fantasias consumistas e palavras de protesto. Período saudoso quando morava apenas em meus pensamentos e acreditava que o mundo deveria me obedecer.

29 de julho de 2014 | N° 17874
MOISÉS MENDES

O chão de Ariano e Iberê

O assunto mais chato da véspera da Copa era a ameaça de caos nos aeroportos. Um dia, no final de abril, dois meses antes da Copa, Ariano Suassuna estirou-se no chão do aeroporto de Brasília, recostou a cabeça numa pasta e ficou ali por alguns minutos.

Alguém fotografou o paraibano. A foto passou a circular pela internet. Pronto. Iniciava-se o caos nos aeroportos. O autor da foto avisava que Ariano não tinha onde sentar.

Ariano era uma boa imagem para a chegada do caos. A torcida contra o governo, a Dilma, o Brasil, a Seleção e o bom senso mobilizou milhares de anunciadores do fim do mundo. Mas os apocalípticos não entendem nada de Ariano Suassuna.

Ele estava apenas descansando, todo de branco, como sempre fazia nos aeroportos. A imagem do caos era da mais absoluta serenidade. Ariano, com um sorriso de canto de boca, como aparecia nas fotos, era um péssimo anunciador do caos. E conspirava contra os que pretendiam ter encontrado um velhinho capaz de representar a primeira vítima do desembarque do fim do mundo.

Pois o caos não veio, e agora Ariano se foi. Quantos no Brasil ainda têm autoridade para repetir seu gesto e estirar-se no chão de lugares públicos e ficar ali impunemente, sem despertar a desconfiança de guardas, fiscais, vigilantes dos bons modos e anunciadores do caos?

Onde você espicharia os ossos? Onde você se comportaria como uma criança, com as mãos segurando a cabeça, deitado de costas, como fazia Ariano, espiando pelos olhos semicerrados os que iriam parar por curiosidade ou ciúme, ou os que estavam ali na incumbência de avisar a brasileiros e estrangeiros que não havia como receber tanta gente durante a Copa.

Onde você se espicharia com as pernas cruzadas, como Ariano, todo de branco, para olhar o mundo de baixo ou para ser visto do alto? Onde? No chão da rodoviária de São Gabriel? No calçadão da Rua da Praia? Na Esquina Democrática, na esquina central do Mercado Público, no piso frio da Usina do Gasômetro?

Ou no chão da Capela Sistina, em meio a gente que anda e chora de um lado a outro olhando para cima, e você deitado hipnotizado pela magia de Michelangelo? Você pode ficar deitado pelo tempo que quiser na Sistina, sem que os guardas do Vaticano o retirem dali, porque Michelangelo pintou aquilo tudo deitado num andaime.

Onde você espicharia os ossos sem ter de dar explicação a ninguém?

Eu queria ter visto o que nunca mais poderá acontecer: Ariano deitado no chão da Fundação Iberê Camargo, admirando a arte que representa seu gesto. O quadro No Vento e na Terra, do homem deitado no chão, nu, como se o seu corpo saísse de um molde daquele barro.

Aquilo é Iberê e é Ariano e somos todos nós. O Ariano que se estirava no chão buscava o que de fato importa. E o que importa, no fim, é a terra. Quem sabe, apenas com uma bicicleta ao fundo, como no óleo de Iberê.


Todo o resto só terá algum sentido se um dia você desafiar os anunciadores do caos e estirar-se no chão, qualquer chão. Ariano era o homem nu pintado por Iberê naquela tela assombrosa. Era ele e o chão. O resto, dizia o paraibano, todo o resto, o tempo esfarela.

29 de julho de 2014 | N° 17874
LUÍS AUGUSTO FISCHER

A ROTUNDIDADE DA TERRA

Matéria do meu tempo de curso primário, obrigatória, que caía em provas, era esta: as provas de que a Terra era redonda, ou, em português de usar em domingos e feriados, as provas da rotundidade da Terra. Esses dias, num sonho, me voltou esse tema, na forma da pergunta que acho que estava no livro de Geografia, talvez do quarto ano: quais as provas de que a Terra é redonda?

Eram três, se me lembro bem. Uma era uma prova empírica que qualquer um poderia reproduzir: ao olharmos fixamente para um navio que parte para alto-mar, vamos vendo-o desaparecer lentamente, e não abruptamente, porque a Terra é redonda; se fosse um plano que acabasse, o navio simplesmente desapareceria, de uma vez só.

A segunda prova era o depoimento dos navegantes do tempo das chamadas grandes descobertas, que viam o horizonte arredondado. A terceira prova vinha escrita numa frase que agora me parece um sintoma da passagem do tempo: “as recentes fotos dos satélites”, que mostravam nosso planeta em corpo inteiro.

Primeiro me veio essa lembrança, depois ela me pareceu estranha, e logo em seguida totalmente justificada. Estamos por viajar, nós aqui de casa, para uma temporada longa fora do país. E será uma viagem que, observada a conveniente distância, a partir do espaço aéreo, vai percorrer um significativo trecho do planeta – se fôssemos de navio, como se usava até duas gerações atrás, era bem possível que o pessoal no cais, abanando um lencinho para nós, visse a embarcação desaparecer devagarinho, aos poucos, afundando no horizonte, numa comprovação do dito fenômeno.

Mas não, vamos de avião, em que nada se pode ver direito, nem da terra, nem de dentro dele. Mas vai conosco a certeza de que a Terra é redonda, como qualquer um pode ver, agora em variadíssimas modalidades de observação, por exemplo o Google Earth.

As novas gerações nascem já sem o conflito embutido naquela pauta obrigatória – no fundo, é fácil ver que a escola ainda fazia força para comprovar a rotundidade do planeta, contra nossos pais e avós, seres ainda dubitativos sobre tanta coisa.


A Terra é redonda e dá voltas. Em seguida nos vemos de novo nas ruas e nas atividades dessa Porto Alegre tão querida.

29 de julho de 2014 | N° 17874
DAVID COIMBRA

A LEI DESRESPEITADA

Em 1979, o Inter que não era qualquer Inter; era o Inter de Falcão. Pois esse poderoso Inter estava acabrunhado, escalavrado, dilacerado. Havia perdido o Campeonato Gaúcho para o Grêmio de Paulo César Caju de forma humilhante, ficando 10 pontos atrás, chegando na terceira colocação, o que, na época, era vexame. Verdade que o Grêmio também montara um time de respeito: Manga no gol, Ancheta na zaga-central, o já citado Caju no meio, Tarciso, Baltazar (ou André) e Éder no ataque. Uma seleção.

Tentando se recuperar do revés, o Inter chamou, para o Campeonato Brasileiro, um técnico que fizera sucesso com um apenas mediano time do Grêmio quatro anos antes: o jovem Ênio Andrade. Ênio começou a reorganizar o time. Definiu o meio-campo com Batista, Jair e Falcão, reforçando o setor com um falso ponta-esquerda, o manhoso Mário Sérgio, o Vesgo, o turfista, o amigo do Guerrinha. No ataque, claro, manteve o grande Valdomiro Vaz Franco, o líder do time. Na defesa, promoveu um guri magrinho, dono de boa técnica, chamado Mauro Galvão. No gol, o paraguaio Benitez. Outra seleção.

O Campeonato Brasileiro de então era muitíssimo confuso, disputado por quase cem times divididos em chaves. Foi o último certame organizado pela CBD, que depois foi extinta pela Fifa. Quatro clubes paulistas, Corinthians, Santos, São Paulo e Portuguesa, brigaram com os dirigentes da Confederação e simplesmente não participaram do campeonato. Uma bagunça.

Em meio à polêmica, Ênio foi trabalhando em silêncio e encaixando as peças do seu time. Era um ourives no trabalho paciente da lapidação. Estava ficando bom, mas era preciso algo mais. Era preciso confiança. Então, no meio do ano, veio o Gre-Nal. Chovia, e o jogo estava duro e truncado, como quase todos os Gre-Nais.

No finzinho, quando a torcida já saía do Beira-Rio, o juiz marcou uma falta para o Inter no lado esquerdo de ataque, longe do gol, na intermediária. Falcão e Jair se posicionaram para bater. Era uma jogada ensaiada. Falcão correu reto para a bola e Jair pela lateral. Falcão deu um toque para o lado, tirando a bola da barreira e abrindo o lance para Jair. Que chutou.

Outro dia, encontrei Jair, e ele me disse que o grande chutador tem de ter pé pequeno. Segundo ele, só o pé pequeno cobre toda a circunferência da bola. De fato, Rivellino, o maior deles, calçava 37. Se não me engano, é o mesmo tamanho do pé de Jair. Pois Jair bateu com o peito daquele seu pequeno pé na bola branca e ela fez uma curva inverossímil, um ponto de interrogação invertido que saiu das mãos tortas de Manga e entrou no ângulo: 1 a 0 para o Inter.

Depois daquele Gre-Nal, o Inter não parou mais de vencer, e foi campeão invicto. O Gre-Nal tem esse poder. Poderia citar dezenas deles que foram semelhantes, dos dois lados. O Gre-Nal, sempre digo e repito, não é o jogo mais importante para a Dupla: é o único jogo importante para a Dupla. Quem não compreende isso, não compreende Grêmio e Inter.

Quando Enderson Moreira fracassou rotundamente nos Gre-Nais do Gauchão, deveria ter sido demitido. Porque não foi um revés comum. Reveses acontecem, são do futebol e da vida. São aceitáveis e, às vezes, fundamentais para futuros sucessos. Só que foi mais do que isso: foi um desastre, com um responsável principal. Esse responsável não poderia ficar. É a lei, para a dupla Gre-Nal. O Grêmio não respeitou essa lei, e agora terá de se debater com a mudança em meio ao Campeonato Brasileiro.

O próximo técnico do Grêmio não terá tempo, como teve Ênio. Não terá certa calma para trabalhar enquanto os adversários se debatem, como aconteceu com Ênio. Terá de fazer tudo sob pressão, sem margem para erro, sem poder aprender com eventuais tropeços. Tudo porque não houve respeito ao resultado do Gre-Nal. Tudo porque o Grêmio não entendeu, e não entende: só o Gre-Nal importa para a dupla Gre-Nal.

O NOVO DUNGA


Tenho acompanhado as amáveis entrevistas de Dunga. Essa nova suavidade do treinador mostra o que sempre soube dele: ele sabe perder, ele aprende com a derrota, ele se refaz. Dunga está se refazendo. Está se tornando um novo Dunga. Tomara que definitivamente.