CONTARDO CALLIGARIS
O
silêncio dos inocentes
Uma cultura pode morrer de sua própria
covardia em defender as ideias que ela inventa e promove
O movimento Estado Islâmico (EI) controla
uma parte consistente do território que pertencia previamente à Síria e ao
Iraque (sei que "consistente" é vago, mas as cidades passam de mão em
mão a cada dia). Nesse vasto território, o EI proclamou um califado, e seu líder,
em 11 de julho, ordenou a mutilação genital de todas as mulheres entre 11 e 46
anos.
A mutilação genital consiste na ablação
do clítoris e, em algumas tradições, de parte dos lábios da vagina. A operação
geralmente é feita sem anestesia e sem condições de assepsia. Essa tortura com
consequências potencialmente mortais garantiria que as mulheres não sintam (mais)
prazer sexual, ou seja, como noticiaram as agências de imprensa (Folha de 25/07),
evitaria "a expansão da libertinagem e da imoralidade" no sexo
feminino.
Segundo a ONU (Organização das Nações
Unidas), a medida do califado pode atingir 4 milhões de mulheres.
Será como em julho de 1994, quando
assistimos de longe, indignados e resignados, ao massacre de mais de meio milhão
de pessoas da etnia tutsi, em Ruanda?
Será como em 1995 (de novo, em julho),
quando assistimos ao massacre de Srebrenica, na Bósnia? Neste caso, um mês
depois, o bombardeio dos sérvios-bósnios pela Otan (Organização do Tratado do
Atlântico Norte) colocou um fim à guerra da Bósnia. Foi tarde para os 8.000 de
Srebrenica, mas foi ao menos isso.
Meus furores intervencionistas são
raramente abstratos. Há intervenções impossíveis porque é dificílimo tomar
partido, e outras que custariam mais vidas do que salvariam. Também me
envergonha, na hora de me indignar, o fato de que os que se armariam e
arriscariam sua vida seriam outros, mais jovens do que eu.
Mesmo assim, penso que o genocídio em
Ruanda, em 1994, poderia ter sido evitado e que o bombardeio das posições dos sérvios-bósnios
em 1995 poderia ter acontecido antes, evitando o massacre de Srebrenica.
No caso de Ruanda, foi dito mil vezes
que o Ocidente deixou o horror acontecer porque o coração da África está longe,
geográfica e culturalmente. Da mesma forma, foi dito que a Otan interveio na Bósnia
por se tratar de um horror "em casa", na Europa.
Mas a intervenção na Bósnia tornou-se
possível e "necessária" também por uma outra razão, um pouco mais
complexa.
Na guerra da Bósnia, as grandes vítimas
eram os bósnios muçulmanos, ameaçados de extermínio pelos sérvios-bósnios (ortodoxos).
Atrás de qualquer consideração geopolítica, os membros europeus da Otan (sobretudo
Alemanha, França e Inglaterra) podiam enxergar, no ódio dos sérvios-bósnios,
uma caricatura do preconceito de suas populações contra os muçulmanos
imigrantes.
Ou seja, talvez a gente seja
especialmente motivado a intervir contra quem pratica horrores dos quais nós mesmos
receamos ser capazes. É policiando os outros que a gente luta contra nossos próprios
demônios.
Se a ordem do califado me indigna tanto é
porque reconheço a sua estupidez: ela é a mesma que, apenas 200 anos atrás,
levava psiquiatras europeus a cauterizar com ferro quente o clítoris de meninas
que se masturbavam com uma frequência que pais e padres achavam excessiva.
Houve uma época (recente --e nem sei se
acabou) em que o desejo feminino nos fazia horror, e a gente estava disposto a
qualquer coisa para silenciá-lo. É esse passado que nos daria o direito de
intervir.
Não se trata de querer abolir uma
diversidade cultural. Certamente há mulheres, no califado, dispostas a ser
mutiladas para continuar pertencendo plenamente à cultura na qual elas vivem. Mas
o que acontecerá conosco se escutarmos os gritos das que não concordam e
deixarmos que se esgotem, até que reine o silêncio dos inocentes sacrificados?
Em Veneza, no Teatro La Fenice, três
semanas atrás, assisti a uma apresentação (única) de "Hotel Europa",
de Bernard-Henri Lévy (publicado pela editora Marsilio numa edição bilíngue,
com textos em italiano e francês). É o monólogo de um intelectual que, num
hotel de Sarajevo, prepara uma conferência impossível sobre a Europa e seus
valores. Lévy foi marcado pela sua presença na Bósnia durante os anos da guerra
e acredita na necessidade moral de intervir nos horrores da casa dos outros.
Concordo ou não, tanto faz; de qualquer
forma, saí da peça com a convicção de que uma cultura pode morrer de sua própria
covardia em defender as ideias que ela inventa e promove. E nossa cultura é ameaçada
por esse destino: ela tem, ao mesmo tempo, um repertório fantástico de ideias e
uma grande timidez na hora defendê-las --até porque uma dessas ideias é que
cada um deve ser livre de pensar como quer.
ccalligari@uol.com.br