WALCYR
CARRASCO
13/06/2014
20h19
Detalhes da saudade
Eles
doem porque provam a mudança - uma xícara suja na pia, a cor da casa, um recado
no celular
Quando
a gente perde alguém, doem os detalhes do cotidiano que ainda permanecem a
nosso redor. Não é a simples presença física, nem o lado da cama vazio. São as
pequenas rotinas a que a gente se acostumou. Um amigo meu recentemente chorou
ao ver a tampa do vaso abaixada. Ele nunca abaixava, ela brigava. E, claro,
sempre abaixava, porque mulher tem esse hábito, e homem só raramente. Ela saiu
do apartamento, até deixou roupas. Foi ao entrar no lavabo, ao ver a tampa
abaixadinha, como ela havia deixado, que ele se deu conta de que tudo acabara. Hesitou,
como se erguê-la implicasse um ritual de separação. Lágrimas correram, enquanto
ele simplesmente olhava para baixo. Quase urinou nas calças, então respirou
fundo, ergueu.
– Parece
idiota, mas significou mais um gesto de adeus – ele me disse.
Entendi.
Pouca gente sabe, mas há muitos anos tive um filho. Quando ele partiu, após uma
série de confusões com a mãe, fui a seu quarto e vi um pequeno par de tênis
sujos, velhos. Durante o breve tempo em que ficou comigo, eu comprara novos. Só
fiquei olhando para aqueles tênis – um deles rasgado na ponta – e sentindo dor,
uma dor enorme. A convivência diária, o sorriso, esperá-lo voltar da escola,
isso não aconteceria mais. A separação
foi mais dolorosa e concreta do que eu
podia supor.
Algum
tempo depois, ele partiu, desta vez para sempre, numa tragédia. A perda de um
filho não tem tamanho. A de um amor também é grande demais, principalmente
quando a gente descobre que está ficando velho e que os sonhos para o futuro já
não podem permanecer no futuro. Lembro que há muitos anos, numa separação, a última
chamada que recebi ainda estava na tela do celular. À medida que os dias
passavam, o nome desaparecia, substituído pelos incontáveis telefonemas da vida
cotidiana. Ah, que dor, eu olhava o celular só para ver seu nome! Senti falta,
era o último laço que ainda, pelo menos em minha imaginação, nos ligava.
São
esses pequenos detalhes que doem, porque constatam a mudança. Vão desde uma xícara
suja deixada na pia, que dá vontade de nunca mais lavar, até a casa próxima,
vendida e pintada de outra cor. Digo para mim mesmo:
– Antes,
aquela casa era azul. Antes.
E
vem a consciência:
– Estou
sozinho.
Pior
é quando a pessoa parte para sempre. Depois que meu pai morreu, encontrei uma
de suas camisas, esquecida. Peguei nas minhas mãos, abracei, cheirei
profundamente. Queria recuperar a existência de meu pai por meio de seu cheiro
de perfume, desodorante, pele. Minha mãe bordava toalhas, e guardo todas que
ela me deu, assim como as blusas de lã que tricotava. As blusas ainda uso nos
dias de muito frio. As toalhas ficam no armário, intocadas, não deixo ninguém
usar. Porque me trazem a lembrança de minha mãe bordando, de agulha na mão, e
de mim mesmo, já adulto, roubando a agulha e fingindo que a espetaria. Essas
lembranças me fazem reviver sua alegria, sua eterna criancice, que me fazia
querer brincar como um menino. Sorrio e murmuro:
– Mãe,
que falta você me faz!
Sei
que é impossível recuperar alguém por meio dos
detalhes do cotidiano. E daí? Dá vontade de pegar o telefone, ligar. Mas
também sinto vontade de esquecer. Como? Até mesmo o presente que nunca dei se
torna uma recordação. Pelo menos, daquele momento em que acreditei haver uma
chance. Estranho. O simples ato de ter comprado um presente me dá saudades de
um momento feliz que poderíamos ter vivido e não existiu. Meu grande amigo, Júlio, aconselha.
– Sai
dessa!
Impossível.
Os detalhes ainda estão por toda parte. Quando minha mãe morreu, nós, os três
filhos, fomos num sábado e desmontamos sua casa, demos os móveis, as roupas. Tudo
num único dia. Lá no fundo, sentia como um gesto de traição. Como desfazer
tudo, de forma tão rápida e prática? Depois, entendi que meu irmão mais velho,
Airton, estava certo. Por que guardar tudo aquilo, remoer a saudade?
Se a
separação é entre duas vidas, muitas vezes não sobra uma casa inteira para
desmontar. Só rastros. Vestígios. Uma mensagem de celular lembrando algo
esquecido ou levado por engano. Um nome num envelope ainda enviado para meu
endereço. Dá vontade de olhar o nome mil vezes, como se houvesse uma força magnética
para mudar tudo.
Perder,
seja para sempre, ou numa separação, é difícil e doloroso. É a presença dos
detalhes do cotidiano que nos aprisiona numa teia de saudades.
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