28
de junho de 2014 | N° 17843
CLÁUDIA
LAITANO
Brigas de salão
Por
uma dessas coincidências que colorem o encadeamento dos fatos com aproximações
inusitadas, Rose Marie Muraro morreu no mesmo fim de semana em que o caderno
PrOA circulava com uma reportagem de Letícia Duarte sobre as novas estratégias
do feminismo (ou pós-feminismo) contemporâneo. Considerada uma das primeiras e
mais importantes feministas do Brasil, Rose Marie Muraro nasceu dois anos antes
de as mulheres conquistarem o direito ao voto no país (1932) e morreu durante o
primeiro mandato de uma mulher na presidência da República.
Nada
mal como emblema do alcance da revolução de costumes que transformou boa parte
do mundo nos 83 anos em que ela viveu – ainda que essa abrangente e irreversível
transformação não tenha atingido todos os países, todas as culturas e todas as
classes sociais da mesma maneira e na mesma velocidade.
Confortavelmente
distante das questões de gênero socialmente determinadas, duas polêmicas sobre
o sexo das mulheres de classe média rolaram nas redes sociais esta semana. A
primeira provocada por um texto da turista alemã Nina Hechtel, de 22 anos, que
se disse “chocada com a cultura de beijos e pegação no Brasil”. A outra em função
do artigo “A incrível geração de mulheres que foi criada para ser tudo o que os
homens não querem”, em que a advogada Ruth Manus lamenta que as mulheres “incentivadas
a estudar, trabalhar, viajar” não se encaixem na fantasia amorosa dos homens da
sua geração.
Lendo
os textos e a batelada de réplicas, masculinas e femininas, que geraram, a
maioria acusando as autoras de reproduzirem um pensamento machista e
conservador, não pude evitar um certo incômodo quando a discussão, lançando mão
de argumentos supostamente libertários, acabava assumindo um tom de arbítrio. Como
se fosse possível determinar o que é adequado ou não sentir na esfera privada. Mais
ou menos como a velha condenação comunista à arte alienada: um deslizamento de
ideias que acaba gerando a exata contradição dos seus próprios princípios.
O
feminismo é uma estratégia muito bem-sucedida para reivindicar direitos civis,
direitos humanos e igualdade de oportunidades, mas é péssimo para discutir como
mulheres devem ou não se comportar (ou sentir) na intimidade – uma vez que
sobre o desejo ninguém legisla, nem mesmo o ser desejante, muito menos os
outros.
A
variedade de possibilidades abertas para quem pode exercer a sexualidade e o
amor livremente pode ir do sexo nenhum ao sexo de hora em hora, do amor de
fotonovela ao romance anarcopunk. Palpitar que homens querem isso ou aquilo ou
que as mulheres são assim ou assado é uma brincadeira que nunca chega a lugar
nenhum, a não ser à constatação pedestre de que somos todos muitos diferentes –
dentro e fora dos nossos gêneros.
O
que mulheres sentem sobre seu lugar nos complexos arranjos do amor e do desejo
dos dias de hoje pode ser divertido como conversa de bar, mas diz respeito
apenas à jornada íntima de cada uma. Que bom se essa energia de afirmação de
princípios feministas, tão prolixa nas redes sociais, canalizasse paixão
semelhante para causas coletivas mais urgentes e relevantes – como, por
exemplo, retirar a discussão sobre o aborto do arquivo morto dos debates
proibidos no Brasil.
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