terça-feira, 24 de junho de 2014


24 de junho de 2014 | N° 17839
MOISÉS MENDES

A eternidade argentina

Entrei muitas vezes na Confitería London City, nos anos 80, quando ainda se fumava nos cafés de Buenos Aires. Me imaginava sentado à mesa com aqueles senhores de terno de alpaca. Saberia tudo do que eles decidiam das suas vidas e das vidas dos outros naquele ambiente enfumaçado.

Há solenidade numa roda de argentinos num café, todos a rigor, como se tivessem saído de casa para uma cerimônia. Também os solitários estão ali solenemente.

Grandes obras foram gestadas nesses ambientes. Julio Cortázar, sempre citado como o maior escritor argentino depois de Jorge Luis Borges, escreveu alguns dos primeiros textos numa mesa daquela confitería, perto das janelas amplas, de onde se vê a vida portenha passar de sobretudo pela Avenida de Mayo.

Um dia, num agosto cinzento, entrei na City, olhei o espelho gigante, a foto de Cortázar ao lado, e perguntei a um garçom onde, afinal, Cortázar escrevia. Ele apontou para uma mesa, mas alertou que ali ninguém mais pode sentar-se.

Lembrei então do Diário de Andrés Fava (editado no Brasil pela José Olympio), que Cortázar escreveu em 1950 na London City.

Ganhei o livro de aniversário, em 2006, da amiga Lúcia Ritzel. São fragmentos, relatos breves, enfim, sueltos com reflexões de Cortázar. Numa das anotações, ele diz ter com frequência a sensação de que já experimentou a morte. Tinha 36 anos:

Sei apenas que já morri antes; nada mais que isso. Que garantia tenho do futuro? Talvez revivamos duas vezes, ou vinte e oito. Quem sabe se não estou em minha última vida. Com que direito me candidato à imortalidade, quando tudo que sei é que venho de uma morte?

Olhei a mesa onde Cortázar fumava e escrevia e pensei se não seria por isso que era mantida vazia. Poderia estar ocupada pelo próprio. Cortázar, quem sabe, vive agora a 29ª vida, porque tem, sim, direito à imortalidade.

Não se brinca com a mitologia argentina. Se você sair da City, que é mais uma confeitaria diurna, e sentar-se num café vespertino, saberá ainda mais por que a eternidade é um dom portenho. No Café Tortoni, por exemplo, frequentado por Borges e encharcado de literatura.

Você sai do Tortoni, na mesma Avenida de Mayo, a três quadras da City, volta para o hotel caminhando, numa noite de agosto, e ouve o som agoniento da gaita de boca de Hugo Díaz fugindo pela fresta de uma porta e tem a certeza de que tudo, e não só Cortázar, morre e renasce sem parar em Buenos Aires.

Um portenho não nasceria para viver apenas uma vez. Tudo para os portenhos é superlativo. Como agora, com mais um sofrimento por mais uma crise econômica.


Mesmo assim, mesmo sem dinheiro, nunca se viu tanto argentino por aqui. Dizem que 200 mil vieram para o jogo de amanhã no Beira-Rio. Imagine quantos desses argentinos que você vê nas ruas podem estar na 28ª vida. O que seria de nós se eles não fossem eternos.

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