23
de junho de 2014 | N° 17838CRÔNICA |
NILSON
SOUZA
Leite não
derramado
Sempre
tive mais admiração por Brizola do que por Jango, pelo histórico de valentia do
primeiro e pela passividade do segundo, mas ontem passei pela praça da Matriz e
xinguei a estátua do ex-governador. Nada muito sério, que não sou dado a
imprecações. Apenas olhei para o engenheiro de bronze, imitei o seu gesto de
dedo em riste e disse:
—
Que papelão, hein?
Não
é que Brizola, na sua fase de conspirador e guerrilheiro, tinha planos de
explodir o Deal? Tomei conhecimento dessa maluquice ao ler a excelente
entrevista que seu filho João Otávio concedeu à colega Dione Kuhn, publicada na
edição de ontem de Zero Hora. O Deal, para quem não habitava os anos 60, era o
Departamento Estadual de Abastecimento de Leite, autarquia que deu origem à
Corlac. O entreposto central de distribuição localizava-se na Avenida Dom Pedro
II, atual Terceira Perimetral, onde ainda estão as ruínas dos prédios.
Muito
frequentei aquele local. Meu pai tinha uma caminhoneta de entrega de leite e
eu, pré-adolescente, acompanhei-o várias vezes no trabalho que começava de
madrugada. Ele encostava o carro nas esteiras, carregava os engradados de
arame, cada um com 10 litros ,
e saíamos a distribuir de porta em porta, nas casas e apartamentos da
Auxiliadora. Eram litrões de boca larga, com tampa fina de alumínio, que se
furava com o polegar para retirar o leite.
Como
a entrega era feita antes do amanhecer, às vezes o cliente deixava na porta do
apartamento uma panela ou fervedor para que o entregador simplesmente
despejasse o conteúdo da garrava e pegasse o dinheiro do pagamento, que ficava
embaixo do tapete. Em alguns casos, deixava uma garrafa vazia para a troca.
Hoje parece inacreditável que se pudesse entrar nos prédios livremente, sem
risco para a segurança.
No
Deal, onde chegávamos por volta das três da madrugada, sentíamo-nos totalmente
seguros. O local era frequentado por trabalhadores, que pegavam pesado para
sustentar suas famílias. Todos tinham as mãos calejadas pelo manuseio dos
engradados de arame ou latão. Não dá para entender um atentado contra aquela
gente, mesmo que o objetivo fosse afrontar a ditadura.
De
acordo com o relato, João Goulart evitou o despautério e sua objeção teria sido
a causa do rompimento com o cunhado. Sei lá, prefiro acreditar que o tal
atentado era apenas uma bravata do nosso herói da Legalidade, até mesmo porque,
anos mais tarde, ele retornou do exílio como um negociador sensato.
Pelo
sim, pelo não, hora dessas vou ao Balneário Camboriú fazer um agradecimento à
estátua de Jango.
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