terça-feira, 17 de junho de 2014


17 de junho de 2014 | N° 17831
LUÍS AUGUSTO FISCHER

PARADOXO NA LITERATURA

Mesmo quem não está muito ligado no mundo da escola e do vestibular já terá ouvido falar do Enem, Exame Nacional do Ensino Médio. Começou como um exame para avaliar a qualidade do ensino e se transformou num exame de ingresso para cursos superiores. Mudança que agora se ampliou, porque há uma política oficial de fazer com que o Enem se torne o vestibular único para todas as vagas do sistema federal de Ensino Superior, de longe o mais importante do Brasil.

Ocorre que o Enem na prática tem demonstrado ser um inimigo da literatura. Questões em que aparece algum aspecto ligado a literatura (nomes de autores e de obras, fragmentos de algum texto literário) são majoritariamente resolvidas sem qualquer conhecimento específico, bastando ler o enunciado. Gabriela Luft defendeu um doutorado minucioso sobre o tema.

Dizendo de outro modo: o Enem afere a leitura funcional, deixando de lado a leitura cultural. Aquela maior profundidade, que a literatura e as artes proporcionam, dá lugar a uma perspectiva de leitura elementar, de simples decifração. (Vale ler, sobre o tema, A Ilustração Vital – Ortega y Gasset e o Desenvolvimento de uma Sociedade Leitora, de Jéferson Assumção, ed. Bestiário.)

Um passo a mais e estamos na beira de um abismo, me parece: como o Enem é virtualmente o único vestibular relevante no país, é claro que ele vai determinar o que vai entrar no radar do Ensino Médio. O que o Enem cobrar vai ter destaque ao longo dos três anos; o que ele não cobrar tende a desaparecer. A atual formação literária por certo precisa de muita mudança, muita melhoria; mas ela tem uma história, que agora está em vias de ser rompida, de modo dramático.

O paradoxo é que esse futuro sombrio se desenha quando o país vive um apogeu em matéria de produção literária (três gerações de escritores a pleno vapor), de vida literária (eventos, concursos, saraus), de vida editorial (traduções em abundância e qualidade, mercado ativadíssimo) e mesmo de compra oficial (o governo federal tem distribuído toneladas de livros).


Se há algo errado nisso tudo, é certo que não está nesses aspectos dinâmicos, e sim no modo como o Enem está tratando a literatura, que no Brasil tem uma tradição amplamente defensável de inclusão social, étnica, regional, de orientação sexual e o que mais se queira.

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