quinta-feira, 9 de dezembro de 2010



09 de dezembro de 2010 | N° 16544
L. F. VERISSIMO


A rotina e a História

Nada me impressionou mais no relato que li, certa vez, sobre os últimos dias da II Guerra Mundial na Europa do que saber que, enquanto as tropas russas entravam em Berlim, em algumas zonas da cidade o leite continuava a ser entregue, os carteiros continuavam a fazer suas rondas, a vida “normal” seguia seu curso.

Não sei se achei isso admirável – o poder de resistência ao caos do banal e do cotidiano – ou um exemplo assustador da rotina desconsiderando a História. Viver “normalmente” num mundo em conflito permanente entre riqueza e miséria, privilégio e exclusão, progresso e atraso é a experiência comum de todo o mundo. Isto inclui os desenvolvidos e os sub, inclui todos sem exceção – a não ser, talvez, os escandinavos.

Mas mantemos nossas rotinas mesmo sabendo dos bilhões de despossuídos da Terra, incluindo os que vemos pelas nossas janelas. Fazer o quê? Sentimos muito, nos indignamos, votamos em quem promete melhorar a situação pelo menos na nossa vizinhança, mas nossas vidas têm que seguir seu curso.

Como em Berlim, o conflito está acontecendo longe do nosso cotidiano. Mas às vezes – como no Rio – o conflito invade o cotidiano. A rotina é abalroada pela História. Nosso dia a dia não é mais refúgio nem álibi e somos obrigados a enfrentar a realidade.

Além das características peculiares do confronto que o incendiou – o tráfico, a polícia, as milícias, os políticos, uma velha História tipicamente brasileira –, o Rio serve como um microcosmo das divisões sociais, raciais e econômicas do mundo, apenas complicado pela sua geografia nada comum.

Discute-se quais seriam as piores favelas do mundo – dizem que as do Haiti e da África do Sul disputariam a medalha de latão –, mas todas as favelas são iguais no que elas representam de descaso de um lado e de ameaça do outro.

Antigamente, quando quem morava nos morros do Rio vivia pertinho do céu e arma de bandido era navalha, já se falava no que aconteceria quando os morros “descessem”.

O temor, explícito ou implícito, é de todo o mundo. Mas enquanto a invasão não vem, ou só vem de vez em quando, a rotina prevalece e a vida segue seu curso. Todas as favelas são iguais no que representam de descaso de um lado e de ameaça de outro.

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