quarta-feira, 8 de dezembro de 2010



08 de dezembro de 2010 | N° 16543
DAVID COIMBRA


Histórias da Arábia

Ainda essa semana o Inter terá o Golfo Pérsico diante do nariz e o deserto Rub-Al-Khali às costas. Eis um deserto de lendas e perigos. Rub-Al-Khali significa “quarteirão vazio”, e é isso mesmo que é esse pedaço de nada. Trata-se de um dos maiores desertos de areia do mundo, com temperaturas extremas, que escalam de zero a 60 graus num único dia, e dunas mais altas do que prédios de 120 andares.

A propósito da passagem do Inter por essa terra vasta (a maior península do mundo) e seca (“arab” quer dizer “árido”), vou contar algumas histórias da velha Arábia. A primeira, nas linhas que se derramam abaixo, acerca de um de seus mais famosos califas, Harun Al-Rashid, que viveu com cruel intensidade entre os séculos 8 e 9.

Harun é personagem inclusive do segundo mais célebre livro escrito em árabe, “As Mil e Uma Noites”. O primeiro, você sabe, é o Alcorão.

Harun acumulou sete esposas, mas só uma deu-lhe um filho. Em compensação, suas inúmeras concubinas geraram 10 meninos e 14 meninas, o que devia acarretar grande despesa em Leite Ninho. Além da beleza das mulheres, o califa amava a bebida, que ingeria em quantidades respeitáveis, e a boa poesia, que recompensava como um rei: regiamente.

O poeta Merwan teceu-lhe uma ode e Harun, em retribuição, cobriu-o com cinco mil peças de ouro, trajes suntuosos, um cavalo de raça e 10 belíssimas escravas gregas prontas para obedecer a todos os seus caprichos, como foi feliz esse poeta Merwan.

O bom sucesso do governo de Harun deveu-se, sobretudo, à capacidade de seu vizir, Yahya Barmak. Como tomou o poder com apenas 22 anos de idade, o califa fez uma autocrítica e, algo raro nos jovens, concluiu que ainda não tinha experiência para administrar o reino. Resolveu delegar funções, algo igualmente raro nos governantes. Chamou Yahya, colocou em sua mão o anel com o sinete e anunciou, como se fosse Lula falando com José Dirceu antes de assumir em 2002:

– Encarrego-o do governo dos meus súditos. Governe como desejar, demita quem quiser, nomeie quem quiser, dirija todos os assuntos conforme achar melhor.

Yahya, ao contrário de Zé Dirceu, não o decepcionou. Sua gestão foi progressista e competente. O país enriqueceu, bem como o vizir e o califa. Tudo ia bem.

Os dois filhos de Yahya participavam da administração e da partilha dos lucros. Harun amava em especial um deles, chamado Jafar. A tal ponto que encomendou às costureiras do palácio uma capa com duas golas. Os dois se metiam na capa e saíam por Bagdá como irmãos siameses. Amizade tão próxima, inclusive fisicamente, gerou comentários desairosos na cidade – línguas rápidas sempre houve e sempre haverá, em qualquer época e lugar.

Ao avançar em idade, o califa talvez tenha se arrependido do naco exagerado de poder que conferiu ao vizir. Até porque tudo indica que os funcionários tornaram-se “confiados demais”, como define a sabedoria do vulgo. É aquilo: patrão é patrão, empregado é empregado. Jafar, o rapaz da capa, esqueceu-se disso e conquistou o coração de Abbasa, irmã de Harun. O problema é que Jafar, além de empregado, era persa, e Harun havia jurado manter o sangue árabe puro na família.

E agora?

O califa resolveu a questão de uma forma meio curiosa: Jafar e Abbasa poderiam se casar, mas não se tocar. Só tinham permissão para encontrar-se na presença dele, Harun. Como já explicou o Pequeno Príncipe, algumas ordens não são cumpridas porque simplesmente não podem ser cumpridas. É claro que o casal de apaixonados se encontrou, se uniu e reproduziu. Durante anos, continuaram vendo-se à sorrelfa.

Mantiveram os filhos bem escondidos do califa. Mas um dia uma das esposas reais descobriu a farsa e alcaguetou Jafar e Abbasa. Harun ficou furioso. Mandou matar a irmã e enterrá-la sob o piso do palácio. Jafar teve a cabeça separada do corpo, o que foi péssimo para a sua saúde.

Yahya e o irmão sobrevivente foram presos e jamais libertados. Finalmente, o califa determinou que os filhos do casal fossem trazidos à sua augusta presença. Ele viu as crianças, admirou-lhes a beleza, conversou com elas e, depois de um suspiro, determinou que o carrasco as executasse.

Tudo acabou mal.

Que os colorados da Arábia aprendam com a história: a desobediência às leis da península pode custar caro.

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