sábado, 6 de novembro de 2010



06 de novembro de 2010 | N° 16511
CLÁUDIA LAITANO


Dedicatórias

Esses tempos contei aqui minha capitulação diante do livro eletrônico. É prático, não tem cheiro e não solta as páginas, além de possuir sobre os de papel a sobrenatural vantagem do teletransporte – pensou, comprou, começou a ler. Simples assim.

Na semana passada, a Amazon anunciou que a venda de livros digitais triplicou em comparação a 2009 e que no último mês os eletrônicos superaram a venda de impressos. É provável que este ano que está terminando seja lembrado como aquele em que expressões como “virar a página” ou “dedicatória” começaram a ficar tão anacrônicas quanto “cair a ficha” e “rebobinar”.

Capitular, no meu caso, significa aceitar a novidade, recebê-la em casa, oferecer o sofá e um cafezinho, sem esquecer que uma vida sem uma certa dose de anacronismo é tão sem graça quanto uma casa em que o máximo de história de cada objeto coincide com o número de parcelas já pagas do crediário. Para quem gosta de ler, o livro usado é o toque de anacronismo que valoriza uma coleção.

Se o colecionador, além de bem informado, for também muito rico, o resultado são bibliotecas fabulosas como a que o empresário José Mindlin doou, em parte, para a USP, e que inclui preciosidades da literatura brasileira. (Cerca de 10% desse acervo, olhem que beleza, já pode ser consultado no site www.brasiliana.usp.br, graças a um robô que passa o dia inteiro digitalizando livros antigos, ou seja, trabalhando para preservar o anacronismo do futuro.)

Mesmo quando não se trata de uma edição rara, um livro colhido em sebo tem sempre um valor agregado extra: o de carregar, além da história que o autor escreveu, aquela do leitor (ou leitores) que passaram por ali antes. Às vezes, é uma história quase invisível, feita de pequenas marcas, dobraduras, sinais discretos de que o livro não foi apenas adquirido, mas frequentado.

Há leitores que sublinham e anotam, dialogando involuntariamente com os leitores do futuro. Há os que apenas assinam e datam a folha de rosto, deixando para a nossa imaginação o trabalho de inventar uma biografia. Uma moça (senhora?) de letra esbelta assinou em 1958 um volume de Maravilhas do Conto Norte-Americano que me acompanha há mais de 20 anos. O nome dela é Celita Campos Chagas. Será que dona Celita ainda vive? Terá transmitido o gosto da leitura para filhos e netos? Cartas para a redação.

Às vezes, a dedicatória registra um mundo de pequenas delicadezas que se tornaram tão raras quanto as próprias dedicatórias. Em um exemplar de A Sinfonia Pastoral que eu guardo há algum tempo, um professor parabeniza o aluno, “o melhor da segunda série C” de 1961: “Com estudo, trabalho, dedicação e perseverança, o aluno pode, e deve, superar os mestres”. Testemunho de uma época em que professor era mestre – e dos alunos era esperado que se espelhassem neles.

No futuro, quem sabe, vão inventar um jeito de fazer livros eletrônicos passarem de um dono para outro, cruzando épocas, de uma geração para a seguinte. Por enquanto, esse é um privilégio dos velhos maços de papel amarelado com cheiro de guardado (acompanhados, com sorte, por belas ou enigmáticas dedicatórias).

Para ajudar um livro que você não quer mais a encontrar um novo leitor, basta encaminhar suas doações para os pontos de coleta do Banco de Livros espalhados pela Feira. Fazer parte, mesmo que discretamente, da história de um livro não deixa de ser uma forma de ultrapassarmos nossa própria vida. Que seja eterno, enquanto lido.

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