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sábado, 20 de novembro de 2010
20 de novembro de 2010 | N° 16525
CLÁUDIA LAITANO
Grand finale
A ideia da morte tornou-se concreta na minha vida algumas semanas antes do meu aniversário de 15 anos, quando um caminhão atravessou o caminho da mobilete novinha que minha amiga havia ganho poucos meses antes, no aniversário de 15 anos dela.
Há uma desinteligência essencial entre o ponto final da morte e a explosão de vírgulas, travessões e dois pontos que a adolescência anuncia. Se eu ainda fosse criança, é provável que algum adulto tivesse se ocupado de revestir esse momento de algum sentido mágico ou religioso que ajudasse a tornar essa perda um pouco menos absurda e fora de hora.
Alguns anos mais tarde, tudo continuaria absurdo e fora de hora, mas talvez eu já tivesse assimilado melhor a noção de que a ausência de lógica e senso de justiça rege boa parte dos acontecimentos que afetam nossas vidas de forma definitiva.
Aos 15, quando os anticorpos da infância já não funcionam mais e os da vida adulta ainda estão amadurecendo, quase tudo é espantoso, definitivo, absoluto – como a morte. Mas a dimensão trágica da existência, aquilo que faz com que um adulto chore, na morte dos outros, a própria finitude, ainda não está completamente instalada.
Talvez por isso, desse primeiro enfrentamento com uma sentença irrevogável do destino, eu lembre não apenas das muitas cenas de choro e consolo mútuo, mas também dos incontroláveis ataques de riso que durante o velório, inclusive nas horas mais impróprias, interrompiam a contrição do nosso luto de principiante.
Rir não diminuía a dor ou a saudade nem tornava aceitável o que não era, mas de alguma forma transformava o sentimento individual de cada uma de nós, as amigas mais próximas, em uma experiência coletiva de catarse e expiação. Rir era o nosso jeito de chorar em conjunto o absurdo da situação.
O que eu queria dizer mesmo é o seguinte: no Brasil, os cerimoniais de despedida, em geral, não costumam abrir muito espaço para que o luto seja vivido de forma coletiva e “customizada”. Há um certo pudor em transformar velórios em espetáculos com discursos, trilha sonora e aperitivos no final, como se vê com frequência em filmes americanos ou britânicos.
Passamos da experiência pré-moderna dos velórios em casa e das carpideiras contratadas para chorar o defunto alheio diretamente para a cerimônia fria e eficiente dos dias de hoje, em que parentes, amigos e conhecidos, com diferentes graus de envolvimento pessoal com o morto, reúnem-se laconicamente (ou nem tanto) diante de um caixão, reservando o único momento de contrição e despedida coletiva para a breve encomendação religiosa, em geral padronizada, que antecede o enterro.
Não há, nesses velórios convencionais, espaço para que o morto seja lembrado em voz alta em toda sua grandeza e banalidade – tornando solene e significativa a experiência daquela perda até para quem não a está sofrendo.
É de certa forma paradoxal que toda a passionalidade que os brasileiros demonstram em vida acabe sepultada em cerimônias chochas, em que a emoção desempenha um papel tão discreto e íntimo. Falta aos nossos velórios a celebração coletiva dos discursos, as lágrimas e o riso, a emoção compartilhada, o espetáculo coreografado da dor. Falta grand finale.
Na morte, quem diria, somos mais britânicos que os próprios.
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