sábado, 27 de novembro de 2010



27 de novembro de 2010 | N° 16532
PAULO SANT’ANA | MÁRIO MARCOS DE SOUZA


José e Pilar

Homem fascinado pelos mistérios da alma, o titular deste espaço deveria reservar duas horas de seu dia, suspender a tentação de fumar e assistir ao documentário José e Pilar. É um filme comovente sobre as últimas décadas da vida de José Saramago – aquelas que começaram aos 63 anos, quando ele conheceu e se apaixonou pela jornalista espanhola Pilar Del Rio, 28 anos mais jovem. Foi uma relação intensa, cúmplice, apaixonante.

– Se eu tivesse morrido aos 63 anos, antes de lhe ter conhecido, morreria muito mais velho do que serei quando chegar a minha hora –, dizia Saramago, diante de uma Pilar agradecida.

– É um filme dolorosamente real e poético – reagiu a própria Pilar, ao destacar o trabalho do diretor português Miguel Gonçalves Mendes.

Sant’Ana nunca mais esqueceria.

A primeira surpresa para quem assiste ao filme é perceber como o diretor e sua equipe entraram na vida do casal. Aos poucos, depois dos primeiros contatos, Mendes passou a fazer parte da rotina de José e Pilar, a tal ponto, que em certas passagens fica a impressão de que não percebiam mais a presença da câmera.

Lá está ela enquanto eles assistem aos programas de TV, debatem política, vão ao banheiro, se aprontam para sair, viajam, cumprem uma agenda estafante. A câmera marca presença até mesmo quando Saramago passa três meses doente. Em algumas passagens, você chega a imaginar que há algum equipamento oculto, como aquele que os repórteres investigativos usam, não percebido pelos personagens. A câmera está lá – sempre ao lado do Prêmio Nobel e de sua parceira.

José e Pilar, nas viagens ou na casa da ilha espanhola de Lanzarote, mostram a cumplicidade que todo casal deveria ter. De alguma maneira, eles descobriram a fórmula de uma relação intensa, afetiva e quase perfeita. A genialidade e o humor de Saramago combinaram como nunca com a inteligência de Pilar, uma jornalista espanhola que um dia marcou uma entrevista com o escritor porque queria conhecê-lo – e nunca mais se separou dele.

– Quando a vi chegar, percebi que seria outra coisa – explica Saramago.

Por uma feliz iniciativa da administração da Vila de Azinhaga, onde nasceu, Saramago e Pilar são nomes de ruas na comunidade – e elas se cruzam em determinado ponto. Seguem juntos para sempre.

Sant’Ana vai descobrir, principalmente, que o documentário confirma uma tese defendida por ele neste espaço inúmeras vezes – a de que o envelhecimento não significa descarte.

A fase mais produtiva da existência de Saramago se estendeu dos 63 anos, quando conheceu Pilar, aos 87, quando morreu. Neste período, conheceu Pilar, casou-se em 1988, escreveu, ganhou o Nobel de Literatura, viu o brasileiro Fernando Meirelles levar para as telas Ensaio sobre a Cegueira (o momento em que ele se emociona ao ver o filme é um dos pontos marcantes do documentário), criou sua fundação, montou uma biblioteca imensa na ilha e viajou pelo mundo todo, inclusive o Brasil.

Cumpriu uma agenda de trabalho tão intensa, que em certo momento quem assiste ao filme se angustia. Quando alguém perguntava se não era cansativo demais, a doce e firme Pilar respondia que eles teriam muito tempo para descansar depois da vida – e que se surpreendia com os jovens de hoje, quase sempre cansados.

José e Pilar é, acima de tudo, uma lição de vida.

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