segunda-feira, 22 de novembro de 2010


MOACYR SCLIAR

Colherzinhas

O jeito que um casal dorme não basta para mandá-lo ao divã (ou ao advogado). Mas que o corpo fala, fala, e existe uma psicologia das posições dos casais na cama. A posição "colherzinha", por exemplo, é a expressão óbvia de que os dois se encaixam.

"É o mesmo que dizer: completamos um ao outro", diz o historiador Marcos Tadeu Cardoso. "Gostar de dormir assim, mesmo que só no início da noite, significa aconchego", lembra a psicóloga Marina Vasconcellos.

EQUILÍBRIO, 16 DE NOVEMBRO DE 2010

QUANDO ELES SE DERAM CONTA de que a posição que adotavam para dormir tinha um significado psicológico importante, ficaram extasiados. Recém-casados, sabiam que se amavam muito. Mas não tinham pensado que seus próprios corpos exprimiriam isso.

Eles eram as colherzinhas; tais como as colherzinhas na gaveta de talheres, encaixavam-se maravilhosamente um no outro. Dormiam acolherados, como dizem os gaúchos. E a partir daí passaram a chamar um ao outro de "colherzinha". Os amigos achavam graça, mas a verdade é que eles eram o exemplo do casal perfeito.

Contudo, as coisas mudam. Já no final do primeiro ano de casamento começaram as brigas. Descobriram que não eram tão parecidos assim, que seus gostos diferiam muito.

O resultado disso é que, na cama, já não adotavam a posição de colherzinha. Ficavam os dois de costas um para o outro. Ele roncava, e ela, impaciente, o cutucava com os dedos, que pareciam os afiados dentes de um garfo. Ele respondia com frases agressivas, cortantes como a lâmina de uma faca afiada. Acabaram se separando.

Ela ficou com o apartamento, onde agora dormia sozinha numa cama de casal que subitamente se tornara imensa. Ele se mudou para outra cidade e não dava notícias.

Ela aguentava firme, mas um dia desabou. O dia em que, abrindo a gaveta dos talheres, viu as colherzinhas perfeitamente encaixadas umas nas outras. A imagem da harmonia, a imagem do amor.
Pensou em mudar de país. Pronta para viajar, bateram à sua porta. Era uma entrega para ela.

A bela caixa de veludo, ela abriu com os dedos trêmulos. Ali, amarradas com um caprichado laço de fita, estavam duas reluzentes colherzinhas, devidamente encaixadas. A campainha voltou a soar. Ela correu para abri-la. Sabia que a felicidade estava chegando.

MOACYR SCLIAR escreve nesta coluna, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas no jornal.

moacyr.scliar@uol.com.br

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