Entrelacos

19 de novembro de 2010 | N° 16524
DAVID COIMBRA

Tem certos dias

Há momentos em que me irrita a defesa das instituições. Em que nem sequer posso ouvir falar em cidadania e sentimentos republicanos. Que coeficiente eleitoral, o quê! Que escaninhos do Congresso! Não me venham com essa história de estabilidade democrática, de pauta para o século 21, de agenda positiva, de independência dos poderes. Fico embolotado só de ler coisas como pacto federativo, câmaras setoriais e transversalidade.

Há momentos em que quero espancar quem fala em adrenalina pura, que quero mais é me empanzinar de gordura trans. Há momentos em que bebo todas, mas me recuso a me hidratar. Há momentos em que quero jogar no lixo mais fétido a alimentação saudável e balanceada, que quero gritar que não existe fumante passivo e que ninguém sabe se o aquecimento global é causado pelo escapamento dos Gordinis ou se é só mais um maldito ciclo do maldito planeta.

Há momentos em que me aborrecem quase à morte a luta pela salvação da Terra, o equilíbrio dos ecossistemas, a preservação do verde.

Há momentos em que não me causa a menor comoção a mancha crescente do desmatamento da Amazônia no chão e a do buraco de ozônio no céu, e nem quero saber se os chineses estão extraindo a bílis dos ursos panda para ingeri-la como afrodisíaco, que se ralem os ursos panda e os chineses impotentes, e muito menos me interessa se os franceses pegam um ganso e enfiam um tubo na goela do ganso e por esse tubo lhe derramam milho.

Milho, milho, até o fígado do ganso inchar de 100 gramas para um quilo, e então os franceses malvados arrancam o fígado das entranhas do ganso e amassam o fígado com critério, pouco se lixando para os sonhos do ganso que jamais serão realizados, e temperam aquela pasta com as especiarias mais especiais até transformá-la em saboroso patê que eu provo com tinto, estalando a língua e dizendo: “Azar o do ganso!”.

Há momentos em que pouco me importa a Estrada da Morte, que todos os cantos do país têm Estrada da Morte. Há momentos em que me enojam as taxas de evasão escolar, a taxa Selic e a taxa de crescimento populacional, em que anseio que tudo o que for de Primeiro Mundo fique no Primeiro Mundo, em que excluo a inclusão digital, em que não me encaixo em nenhum nicho de mercado, em que quero que todos sejam derrotados na guerra cambial e, sobretudo, há momentos em que me da ganas de esganar quem balbucia algo nojento como “choque de gestão”.

Há momentos em que gostaria de ver implodidas as plataformas de comunicação, em que me recuso a produzir conteúdo, em que festejaria se fossem retirados todos os pontos da tabela, em que me dão sono os preparativos para a Copa e as negociações para a transição. Há momentos em que, francamente, uso desbragadamente o advérbio de modo. E há momentos em que tudo o que me dá vontade de fazer é pingar o ponto final.