segunda-feira, 15 de novembro de 2010



5 de novembro de 2010 | N° 16520
PAULO SANT’ANA


O que é obrigação?

Eu não tinha obrigação de cantar, como cantei, com a Alcione, na quadra do Império da Zona Norte, sexta-feira à noite, 4 mil pessoas assistindo a nós, o samba correndo e emocionando as gentes.

Não tinha obrigação, mas como recusar o convite da Alcione para cantar com ela?

Não tinha obrigação, uma ova, e a obrigação com os meus costumes, com a minha tradição, com o meu caráter, com a minha estreita mas significativa cultura?

Claro que eu tinha obrigação com todos esses valores, inclusive com o meu prazer de cantar e com o entranhado amor à música e ao samba, que nasceu em mim nas tardes de vagabundagem da minha infância pelo Partenon, quando eu espreitava os conjuntos regionais que ensaiavam e ia, se me deixassem, tamborilar um surdo e fazer parte dos vocais.

Eu não podia deixar de cantar com a Alcione na quadra da escola de samba. Em primeiro lugar, eu tinha de ouvir a Alcione, pena que me esqueci de convidar minha filha Ana Paula para ir comigo.

Ela adora samba e adoraria ainda mais a Alcione, rainha do samba, vestida naquele seu longo colorido, de chinelos de dedo, assim como gosta também de fazer shows o Martinho da Vila: estes sambistas antigos têm uma mania antiga de usar sandálias confortáveis, em que aparecem os dedos de seus pés.

Quando eu subi ao palco a chamado da Alcione, disse para ela e para o público no microfone que ela escolhesse entre três músicas a que eu iria cantar: Folhas Secas, As Rosas não Falam ou uma que não sabia o nome mas era ligada essencialmente à Mangueira.

A Alcione consentiu gentilmente que eu cantasse a última, um clássico sobre a Mangueira, mas Alcione não se lembrava da letra. E eu fui adiante acompanhado pela Banda do Sol:

Aquele mundo de zinco que é Mangueira

Desperta com o apito do trem.

Uma cabrocha uma esteira

Um barracão da madeira

Qualquer malandro em Mangueira tem.

Mangueira fica pertinho do céu

Mangueira vai assistir ao meu fim

Deixei o nome na história

O samba foi minha glória

Eu sei que muitas cabrochas

Vão chorar por mim.

O público vibrou, bateu palmas, e a outra música que cantei é claro que Alcione sabia, e nós fomos juntos até o fundo em As Rosas não Falam.

Que cantora, esta Alcione! Que potência de voz, que afinação, que ligação telúrica ela tem com a música popular brasileira. E ainda toca trompete, a danada.

E custa caro trazer Alcione a Porto Alegre, porque ela traz junto sua banda de 10 músicos, sabe como é: passagens, hotel, alimentação para todos.

Mas a Império da Zona Norte tem tradição em trazer grandes artistas e a noite foi maravilhosa. Eu cercado de amigos que me protegiam, aos quais agradeço penhoradamente.

São dessas noites raras para mim que ainda é feita a minha vida. Música, muita Coca-Cola Zero e batatas fritas, gentilezas da Império. Se não fossem as gentilezas dos outros, a minha vida não teria mais sentido.

Bate outra vez, com esperança o meu coração

Pois aí está chegando o verão...

Nenhum comentário: