sábado, 27 de novembro de 2010



27 de novembro de 2010 | N° 16532
CLÁUDIA LAITANO


Osso duro de roer

Ainda sem o distanciamento ideal, tanto dos fatos quanto da ficção, muita gente se perguntou esta semana se a bilheteria-fenômeno do filme Tropa de Elite 2 teria, de alguma forma, influenciado a forma como os moradores do Rio de Janeiro reagiram à compacta ação contra os traficantes que tomou conta da cidade nos últimos dias.

O apoio generalizado da população, expresso em aplausos, gestos de solidariedade e um número recorde de ligações para o Disque-Denúncia, deu ânimo à polícia e mostrou que pode estar ruindo o mito do traficante protegido pela comunidade.

Nada pode ser pior para o Estado e para o cidadão comum do que uma população que tem mais medo da polícia do que do ladrão. Esta semana, no Rio, foi dado um voto de confiança à polícia.

E o Capitão Nascimento tem algo a ver com isso? Talvez seja cedo demais para dizer. O que já é possível perceber a olho nu é que os dois filmes da série Tropa de Elite ajudaram a forjar a imagem de um policial convincentemente confiável: nem tão correto que pareça inverossímil, nem tão pragmático a ponto de já ter abandonado o ideal de derrotar o crime organizado.

É possível que a população do Rio tenha visto em cada oficial do Bope um Capitão Nascimento em potencial – um sujeito treinado, bem equipado, bom naquilo que faz e, com alguma sorte, genuinamente interessado em evitar que inocentes sejam abatidos em meio a uma guerra inevitável.

Por mas sutil que seja essa mudança cultural com relação à polícia, e se ela de fato existir, Tropa de Elite está saindo do cinema para entrar na história. Como já aconteceu antes, por exemplo, com a minissérie Anos Rebeldes (1992), da Rede Globo, até hoje lembrada como um dos fatores que criou o ambiente propício para o movimento dos caras-pintadas e a renúncia do presidente Collor.

Falando no ex-marido da Rosane, nunca é demais lembrar que o mesmo sujeito que tungou as poupanças alheias foi a mente estreita que decretou que o país não precisava de cinema. Em 1992, último ano do seu governo, um único filme brasileiro chegou aos cinemas, A Grande Arte, de Walter Salles, falado em inglês. Em 2010, foram quase uma centena – inclusive a maior bilheteria do ano até agora, superando o blockbuster Avatar.

Exatos 20 anos depois do início da Era Collor, que obrigou o cinema nacional a se reinventar artística e financeiramente e a se reconectar com o público, Tropa de Elite 2 marcha para tornar-se a maior bilheteria brasileira de todos os tempos. O recorde tem até data provável para ser batido, a primeira quinzena de dezembro, quando o Coronel Nascimento deve ultrapassar os históricos 10,7 milhões de espectadores de Dona Flor (1976).

A personagem brejeira e sensual, símbolo de um país capaz de dar um jeitinho para acomodar quase tudo, até mesmo dois maridos em uma mesma cama, vai perder seu posto de preferência nacional para um sujeito cínico e sem ilusões, mas disposto a enfrentar seus problemas de frente – mesmo, e principalmente, quando eles são osso duro de roer.

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