sexta-feira, 5 de novembro de 2010



05 de novembro de 2010 | N° 16510
DAVID COIMBRA


Eu não tô ouvindo

A babá que cuidava do meu filhinho arranjou emprego em uma loja. Evento de certa gravidade. Afinal, ela estava com meu Pocolino havia um ano e meio. Quase nada para você, que é adulto e leitor de jornais; quase tudo para ele, que tem três anos de idade e só se preocupa com a temperatura do mamá de Nescau.

A mudança já era ruim em si. Tornou-se pior porque a babá precisou sair de forma meio abrupta, a loja lhe reivindicava presença imediata. Então, um dia ela brincava com ele de Relâmpago McQueen; no outro, sumiu. Uma perda. A primeira dentre tantas que, inevitavelmente, ele amargará vida afora. A vida é uma sucessão de perdas.

Passou-se um dia. Outro. E mais outro. Tinha de lhe dar uma explicação. Não podia alguém tão íntimo desaparecer do dia a dia dele sem uma razão plausível. Uma manhã, à mesa do café, comecei a falar sobre a saída dela, por que ela não apareceria mais, por que fora embora. Ele ficou me olhando por alguns segundos. Depois interrompeu, balançou a cabeça e disse, com surpreendente firmeza naquela sua vozinha de nenê:

– Eu não tô ouvindo.

A frase me desnorteou por algum tempo, mas resolvi ir em frente com a explicação. Retomei o assunto. Só que ele repetiu:

– Eu não tô ouvindo.

Fiquei em silêncio, olhando para o meu Pocolino. Ele me encarava muito sério com seus olhões pretos. Um olhar decidido. Decidido a não ouvir.

Pensei por alguns instantes. E mudei de assunto. Comecei a falar de uma Kombi amarela de plástico que ele ganhou, por algum motivo ele adora Kombis. Então, o Pocolino ouviu, disse que sua Kombi era a mais rápida de todas, uma ótima Kombi. E eu, pensando em mim mesmo, concluí que ele estava certo. Porque eu também, muitas, muitas vezes, preferia não ouvir.

Com devassidão?

O Fraga deu um show no lançamento do nosso livro, quarta-feira passada, na Feira. Estávamos autografando Jô na Estrada, você sabe: um folhetim orgulhosamente impróprio para menores de 18 anos.

Acontecia assim: um leitor chegava, conversávamos um pouco e eu me empenhava para escrever uma dedicatória que fizesse valer a pena ele ter esperado por mais de uma hora na fila. Então, passava o livro para o Fraga. E ele, em 30 segundos, desenhava uma Jô nuinha, nuinha, coisa mais linda. Antes de pôr o pincel na página, perguntava:

– Com ou sem devassidão?

Aí, ocorria o surpreendente. As senhoras de idade provecta ou as nem tanto, porém já maduras, essas esfregavam as mãos, sorrindo, e exclamavam:

– Com devassidão, é claro!

Mas as meninas, as jovens tenras, ainda frescas como as manhãs da Serra, essas miavam:

– Ai, seeeem, né...

Se o viço se vai com a idade, vai-se também o tolo costume de se levar a sério demais.

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