sexta-feira, 12 de março de 2010



12 de março de 2010 | N° 16272
DAVID COIMBRA


O que aconteceu naquela noite

Outro dia, um taxista contou-me sobre um assalto que sofreu. A história me tocou, embora saiba bem que taxista assaltado em Porto Alegre não é raridade; é regra.

Disse-me ele que no último Natal havia planejado trabalhar das sete da noite às onze. Depois do que, voltaria para casa, cearia com a mulher e as duas filhas pequenas, distribuiria os presentes e, em torno da 1h da madrugada, retomaria o trabalho.

Ainda não eram 10 horas quando três garotos entraram no carro. Nada suspeitou, mal passavam de meninos. Mas a certa altura um deles encostou o cano frio do revólver em seu pescoço. O taxista foi obrigado a dirigir até um terreno baldio, e lá começou a tortura. Fizeram-no ajoelhar-se e passaram a espancá-lo, exigindo dinheiro. Já no primeiro soco, o sangue esguichou-lhe do nariz.

Até então ele conseguira reunir R$ 75. Os bandidos acharam pouco. Vasculharam o carro. Encontraram sua carteira com R$ 20. Para eles, um sinal de que havia mais, em alguma parte. Irritaram-se. Bateram com maior afinco. Ameaçaram matá-lo.

Ele só repetia que era tudo o que tinha e pensava na família, que, supunha, não iria ver nunca mais. Furiosos, os bandidos lhe arrancaram a camisa e os sapatos, depenaram o carro, levaram o que puderam carregar, e o deixaram ali, seminu, sangrando, inchado, dolorido e humilhado.

Nas horas seguintes, o taxista procurou a polícia, ligou para a mulher, a essa altura desesperada com seu sumiço, e finalmente voltou para casa. Eram mais de duas horas, e ele não tinha um único real para, no dia seguinte, comprar leite para as filhas. Gastara tudo no pagamento das contas do mês, na ceia de Natal e nos presentes.

Então aconteceu o que me comoveu. O taxista reuniu as forças, ajeitou o carro o melhor que pôde, lavou-se, vestiu roupas limpas.

E saiu para trabalhar.

Rodou um tanto e viu que três homens faziam sinal em uma esquina. Parou. Eles entraram. Deram um endereço na Vila Cruzeiro. Ele arrancou. No trajeto, narrou sua desventura e desculpou-se pelo seu estado e o do carro. Na Cruzeiro, os passageiros pagaram e desejaram-lhe sorte.

Uma quadra depois, um homem levantou o braço. Ele parou. Para a Restinga. Tocou. Passou as horas seguintes na Restinga, onde táxis são raros na noite de Natal. Chegou em casa de manhã, com R$ 700 e a decisão de não mais trabalhar à noite.

Entenda: aquele homem havia sido roubado e supliciado. Por pouco não fora morto. E ainda assim engoliu o trauma para ir às ruas atrás do leite das filhas. Fiz mais algumas perguntas. Queria saber o que ele sentira. É claro que estava fraco, cansado e que tinha medo.

É claro que a aflição das horas em poder dos assaltantes o fragilizara. Mas havia algo que lhe pesara mais no peito. A vida dele, um trabalhador, um pai, um homem de mais de 40 anos que lutava para dar dignidade à sua família, a vida dele ficara à mercê da crueldade de três garotos desconhecidos.

Por quê? Ele não fizera nada para merecer aquilo, mas aquilo acontecera com ele. Uma injustiça brutal. Mas o mais tocante foi a conclusão do taxista a respeito do que lhe ficou da experiência. Resumiu-a em uma única frase, dita sem nenhuma revolta, mas com alguma tristeza:

– Naquela noite, eu deixei de ser gente.

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