sábado, 28 de novembro de 2009



Nas asas da autoajuda

O gênero que se propõe a auxiliar e confortar as pessoas nas questões espinhosas da vida é um fenômeno editorial que só faz aumentar: nunca tantos escreveram para
orientar, e nunca tantos leram em busca de orientação

Isabela Boscov e Silvia Rogar - Montagem com fotos de Pedro Rubens

"Nenhum homem é uma ilha", escreveu o inglês John Donne em 1624, em uma frase que atravessaria os séculos como um dos lugares-comuns mais citados de todos os tempos. Todo lugar-comum, porém, tem um alicerce na realidade ou nos sentimentos humanos - e esse não é exceção.

Donne foi um dos poetas extraordinários de seu idioma, conhecido sobretudo pelos versos sugestivamente eróticos. Mas, quando distinguiu os homens, dependentes uns dos outros por natureza, das ilhas, isoladas por definição, em sua Meditação XVII, estava em outra etapa de sua trajetória. Aferrara-se ao anglicanismo e virara pregador. Procurava, com essa estrofe célebre, expressar um tipo diverso de amor: o sentido de conexão que quase todos experimentamos com nossos semelhantes.

"Cada homem é uma partícula do continente, uma parte da terra; (...) a morte de qualquer homem diminui-me, porque sou parte do gênero humano", prosseguia sua Meditação. Durante toda a história da espécie, a biologia e a cultura conspiraram juntas para que a vida humana adquirisse exatamente esse contorno, o de um continente, um relevo que se espraia, abraça e se interliga.

A vida moderna, porém, alterou-o de maneira drástica. Em certos aspectos, partiu o continente humano em um arquipélago tão fragmentado que uma pessoa pode se sentir totalmente separada das demais. Vencer tal distância e se reunir aos outros, entretanto, é um dos nossos instintos básicos.

E é a ele que atende um setor do mercado editorial que cresce a saltos largos: o da autoajuda, e em particular de uma autoajuda que se pode descrever como espiritual. Não porque tenha necessariamente tonalidades religiosas (embora elas, às vezes, sejam nítidas), mas porque se dirige àquelas questões de alma que, desde que o tempo é tempo, atormentam os homens.

Como a perda de uma pessoa querida, a rejeição ou o abandono, a dificuldade de conviver com os próprios defeitos e os alheios, o medo da velhice e da morte, conflitos com os pais e os filhos, a frustração com as aspirações que não se realizaram, a perplexidade diante do fim e a dúvida sobre o propósito da existência.

Questões que, como séculos de filosofia já explicitaram, nem sempre têm solução clara - mas que são suportáveis quando se tem com quem dividir seu peso, e esmagadoras quando se está só.
Ernani d’Almeida


CATIVADA PELA LEITURA

A ex-modelo Luiza Brunet, que há mais de vinte anos lê todos os dias, para si mesma ou para os filhos, algum trecho de O Pequeno Príncipe: mensagens de "bondade e simplicidade"

Uma olhada na lista dos livros mais vendidos de VEJA revela que aqueles que os leitores entendem como fonte de inspiração para uma vida mais harmônica estão espalhados por todas as categorias - a ficção, como no caso de A Cabana, a não ficção, como Comer, Rezar, Amar, e a auto-ajuda propriamente dita, como em O Monge e o Executivo (veja quadros nesta página). O gênero, de fato, é herdeiro de todas as formas de escrita conhecidas. O alento, o esclarecimento e a orientação espirituais podem vir de memórias e biografias.

Podem estar na poesia, cujas nuances captam tão bem os estados de ânimo mais indefiníveis, e na prosa, que nos irmana para além do tempo e das circunstâncias. Podem estar na Bíblia ou em outros textos sagrados, é claro, e na filosofia, que afinal de contas existe para refletir sobre a condição humana. Podem estar até nos quadrinhos - por exemplo, no minucioso estudo da frustração que é a tirinha Charlie Brown, ou na compreensão da angústia adolescente demonstrada em Homem-Aranha.

É, enfim, um propósito a que escritores e pensadores de todas as tendências e dimensões vêm se dedicando desde os primórdios da palavra escrita, porque a solidão e a perplexidade são inevitáveis à condição humana (veja frases). O que hoje torna o gênero específico um fenômeno é o seu ímpeto multiplicado: nunca tantos escreveram com o intuito de orientar, e nunca tantos leram em busca precisamente de orientação.

As mudanças que conduziram a isso não são poucas nem sutis: na sua segunda metade, em particular, o século XX foi pródigo em abalos de natureza social que reconfiguraram o modo como vivemos. O campo, com suas relações próximas, foi trocado em massa pelas cidades, onde vigora o anonimato. As mulheres saíram de casa para o trabalho, e a instituição da "comadre" virtualmente desapareceu.

Desmanchou-se também a ligação quase compulsória que se tinha com a religião, e que dava ao padre, ao pastor ou ao rabino o posto de conselheiros de todas as horas. As famílias encolheram drasticamente, não só no número de filhos, mas na sua extensão. Em lugar daqueles ajuntamentos ruidosos, que reuniam dezenas de tios, primos, avós e agregados de parentesco vago, mas firme, tem-se agora pequenos núcleos - pai, mãe e um filho ou, vá lá, dois. Nem esses núcleos resistem como antes.

Nos Estados Unidos, a pátria da autoajuda enquanto gênero próprio, quase metade dos casamentos acaba em divórcio. No Brasil, onde até 1977 havia no máximo desquite, e ele era um escândalo, a taxa anda pelos 25%. A vida profissional, ainda, se tornou terrivelmente competitiva, o que acrescenta ansiedade e reduz as chances de fazer amizades verdadeiras no local de trabalho.

Também o celular e o computador fazem sua parte, aumentando o número de contatos que se desfruta, mas reduzindo sua profundidade e qualidade. Com um grãozinho de misantropia, pode-se concluir que, bem, isso significa muito menos gente dando palpites indesejáveis.

Não deixa de ser verdade; mas, maior do que esse ganho, é a perda daquela vasta rede de segurança que, desde que a humanidade começou a se organizar em agrupamentos codependentes, mantinha cada um de nós ancorado.

Uma rede que, é certo, originava fofoca e intromissão, mas também implicava conselhos e experiência, amparo e solidariedade, valores sólidos e afeição desprendida, que não aumenta nem diminui em função do sucesso ou da beleza.

Essa é a lacuna da vida moderna que a autoajuda espiritual vem se propondo a preencher: esse sentido de desconexão que faz com que, em certas ocasiões, cada um de nós se sinta como uma ilha desgarrada do continente e sem meios de se reunir novamente a ele.

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