quinta-feira, 26 de novembro de 2009



26 de novembro de 2009 | N° 16167
LETICIA WIERZCHOWSKI


O pensamento desligado da mão

Semana passada, outro bebê foi esquecido dentro de um carro, dessa vez pela própria mãe. A mulher saía de casa diariamente com as duas filhas: deixava na creche a pequena, de cinco meses, depois levava a filha de seis anos para outra creche; então ia para o trabalho.

Naquele dia, essa rotina se inverteu: a mãe deixou primeiro a filha de seis anos. No caminho para a creche da bebê, confundiu-se e rumou para o próprio serviço, esquecendo no carro a filhinha mais nova, que morreu devido a uma hipertermia.

Lamentei por essa infeliz mãe (mãe que sou, não posso imaginar dor maior do que a perda de um filho). Especialistas dizem que a rotina pesada dos dias atuais é a culpada por esses lapsos, e que a mãe em questão, provavelmente sobrecarregada com o trabalho, o trânsito paulista, mais a função familiar, agia de maneira automática a fim de cumprir suas múltiplas tarefas.

Casos como esse não acontecem somente aqui: nos EUA, morrem 37 crianças a cada ano por hipertermia dentro de carros familiares. Uma dessas crianças era filha de um funcionário da Nasa, e depois disso a empresa desenvolveu um dispositivo para evitar esquecimentos: um sensor de peso que dispara quando o carro é trancado com algo que não deveria estar lá.

Depender de um alarme para avisar os pais da presença do próprio filho num espaço tão exíguo como um carro me parece coisa de filme. Esquecer da existência física de uma criança pressupõe que esquecimentos anteriores (e bem mais sutis) já se cristalizaram.

A rotina estressante que alguns pais vivem há muito que expulsou os próprios filhos da sua agenda e, talvez, das suas mentes: filhos que são criados por outros, terceirizados em seus cuidados básicos – alimentação, higiene e amor – e que para alguns pais passam a ser apenas isso: pessoinhas que são carregadas numa sequência lógica de um ponto a outro da cidade, da casa para a creche, da creche para a casa.

Talvez fosse bom a Nasa criar um alarme que soe na hora em que um casal decide ter um filho, avisando-os da maravilhosa bagunça que eles fazem nas nossas vidas. Aliás, uma bagunça ruidosa demais para que seja crível esquecê-los silenciosamente no banco traseiro de um carro.

Enfim, onde a lógica não alcança, deixo a poesia: “A civilização em que estamos é tão errada que nela o pensamento se desligou da mão. Ulisses, rei de Ítaca, carpinteirou seu barco. E gabava-se de também saber conduzir num campo a direito o sulco do arado.” (Sophia de Mello Breyner)

Ainda que com chuva e previsão de ventos outra vez, que tenhamos todos uma excelente quinta-feira

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