segunda-feira, 23 de novembro de 2009


MOACYR SCLIAR

Vida dupla

Os números e as tabelas estudadas simplesmente sumiam de sua mente, e ela só tinha olhos para o parceiro

Uma ex-prostituta que divulgava suas memórias em um famoso blog -transformado em série de TV- causou furor no Reino Unido ao revelar sua identidade, mantida em segredo por seis anos. A autora do blog "The Intimate Adventures of a Call Girl" ("As Aventuras Íntimas de uma Garota de Programa") é uma médica de 34 anos da cidade de Bristol.

Brooke Magnanti, que diz ter trabalhado como prostituta de luxo para bancar seus estudos de doutorado (é PhD em epidemiologia), resolveu revelar sua identidade ao jornal "Sunday Times" porque não queria mais suportar "esse pesado segredo".

Com o dinheiro levantado com as adaptações de seu blog para um livro e a série de TV, Magnanti largou a carreira de prostituta. Hoje ela trabalha em um programa de pesquisa em um hospital da Universidade de Bristol.

Um porta-voz da universidade disse: "Esse aspecto do passado da dra. Magnanti não é relevante para o seu atual papel na universidade" e que as revelações não afetariam as suas futuras chances de contratação.

A DECISÃO não foi fácil, mas sua determinação de fazer o doutorado era grande, e assim ela recorreu ao meio mais imediato para ganhar o dinheiro necessário para pagar os estudos: aderiu àquilo que é eufemisticamente chamado de "a profissão mais antiga do mundo".

Para ela, contudo, uma coisa estava bem clara: entregar o corpo não significava entregar-se como pessoa. Usava sempre uma máscara, que aliás para muitos homens funcionava como algo excitante, e durante as relações procurava manter a mente ocupada; recordava, por exemplo, os estudos epidemiológicos que tinha lido naquele dia, examinava-os à luz da lógica científica, tirava suas próprias conclusões, discutia com imaginários interlocutores. Coisa que os clientes aparentemente nunca notavam; ao contrário, eram unânimes em dizer que ela era uma grande mulher.

Mas houve um cliente que, desde a primeira vez, deixou-a abalada. Era um homem jovem, bonito, gentil, de fala macia; pior, era médico, trabalhava num grande hospital e adorava sua profissão, sobre a qual falava com muito entusiasmo.

Ela nada disse, claro, sobre sua própria formação profissional, nem sobre seus planos de fazer o doutorado; mas a verdade é que o belo doutor perturbava-a e era em vão que ela tentava concentrar sua mente em complexos estudos epidemiológicos. Os números e as tabelas estudadas simplesmente sumiam de sua mente, e ela só tinha olhos para o ardente parceiro.

Foi com enorme alívio que, um dia, constatou que já não precisava da prostituição para viver. Concluiu o doutorado e foi contratada para o programa de pesquisa epidemiológica de um grande hospital universitário. Trabalharia com um parceiro médico. Quando foi apresentada a ele, quase desmaiou: era o jovem doutor que tanto a fascinara.

Se ele a reconheceu ela não sabe dizer. Mas de uma coisa tem certeza: em algum momento farão amor novamente. E aí os estudos epidemiológicos irremediavelmente irão para o espaço. MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas na Folha.

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