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sábado, 28 de novembro de 2009
29 de novembro de 2009 | N° 16170
PAULO SANT’ANA
O relógio e o espelho
Até o máximo possível e permitido, nunca se deve dar relógio de presente para crianças. O primeiro passo para a aflição do homem é o relógio. A criança é feliz porque não tem noção das horas, do compromisso, do dever com hora marcada.
Nunca vi em minha vida uma criança acordar-se e ver que horas são. Este é o reflexo imediato de qualquer adulto. Depois do sono reparador, do desligamento da vida, retornamos às nossas preocupações.
O sono é o céu do vazio, do nirvana, o relógio traz-nos de volta ao inferno das obrigações.
Consulte seu passado, o tempo mais feliz de sua vida foi aquele em que não usava relógio, indiscutivelmente.
O relógio é o instrumento que mede a vida e dá-nos a consciência da morte, a pior desgraça dos humanos. Os animais são felizes porque não sabem que terão de pagar o preço da morte. O homem começa a ter noção de que sua vida terá um fim quando põe pela primeira vez um relógio no pulso, ignorando que aquela é a algema que o amarra ao tempo, portanto à finitude.
Eu nunca daria de presente um relógio a uma criança. Gostaria que ela permanecesse indiferente e imune aos prazos, solta, que não tivesse nem noção do dia e da noite, apenas fosse dormir e despertasse quando tivesse sono ou dele se saciasse.
Ter hora para dormir, para acordar-se, para trabalhar, para comparecer à audiência ou ao encontro, estas horas fatais todas é que vão destruindo as pessoas e aproximando-as da morte, senão pelo fato, mas pela perspectiva.
O paraíso de Adão e Eva dá-se exatamente porque não havia lá um relógio, nem o casal primevo conhecia quem o antecedera, o que significaria a morte.
Os tempos da infância e da juventude são os mais felizes pela inconsciência da morte. Até quando fiz 40 anos, eu pensava que era imortal. E essa é a sensação de todos os jovens.
O jovem sabe que vai morrer, mas está tão distante da morte, que consegue ignorá-la, ela não passa de uma utopia diante da vida estuante que se oferece à sua frente. Tem mais é que pensar na vida, o prazo da morte desaparece em meio à delícia existencial.
Não há instante mais crucial da vida que aquele em que o homem se olha no espelho e vê que não é mais aquele. O primeiro inimigo do homem é o relógio, o segundo é o espelho.
Reparem que as crianças nunca se olham no espelho, a não ser quando cobiçam idiotamente tornarem-se adultas. Já o adulto olha-se no espelho sempre com um pé atrás, sabendo que seu aspecto só pode retroceder.
O homem que olha para o relógio ou para o espelho está sendo aos poucos aniquilado pela maior adversária do homem, que é a pressa.
Não conheço pessoa madura que não seja escrava prestativa do relógio ou do espelho, instrumentos da sua agonia.
Nunca dê um relógio ou um espelho para uma criança. Ela só é feliz porque estes dois objetos são-lhe absolutamente dispensáveis.
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