terça-feira, 7 de abril de 2009



07 de abril de 2009
N° 15931 - CLÁUDIO MORENO


O verdadeiro professor

Todos os guerreiros de Troia tinham o mesmo pesadelo: um dia eles iriam se defrontar com o temível Aquiles, que os deixaria estendidos no pó ensanguentado da planície.

Por isso, quando ele anunciou que não queria mais combater, os troianos receberam a notícia com um alívio indescritível. A euforia, porém, durou pouco, pois com a morte de Pátroclo, seu amigo querido, Aquiles retornou com muito mais ferocidade.

Ao vê-lo de volta, os troianos fogem como podem, e muitos, no despero de escapar da morte, livram-se das couraças e dos capacetes e mergulham nas águas do rio. É inútil, pois Aquiles os fere, um a um, com sua lança certeira, enchendo a praia de corpos que se debatem como peixes agonizantes.

Neste momento, para sua surpresa, reconhece um dos fugitivos: nu, tremendo de medo, está diante dele um dos filhos de Príamo, o jovem Licaon, o mesmo que ele próprio, há menos de duas semanas, tinha capturado e vendido como escravo na ilha de Lemnos.

Era o destino: um amigo de Príamo, ao ver o prisioneiro, tinha pago seu resgate para devolvê-lo secretamente a Troia – e agora estava ali, outra vez aos pés de Aquiles, implorando pela vida, pois nem tivera tempo, nem oportunidade de fazer algum mal aos gregos. Aquiles, então...

E foi bem nesta passagem da Ilíada que o pai interrompeu a leitura, com um ar desconcertado, explicando ao filho que aquela tradução de Homero tinha uma lacuna e omitia o desfecho da história. O menino tremia de frustração. Então não ficaria sabendo o que Aquiles ia fazer com o pobre Licaon?

E isso era justo? O pai, que também parecia desapontado, informou, em tom casual, que ali, na mesa, havia uma edição em grego e um dicionário. E se eles próprios tentassem decifrar, no original, o restante da cena?

Pegando a mão do filho, fez que deslizasse o dedo pelas linhas, enquanto ele lia em voz alta o texto grego. Abrindo o dicionário, os dois se puseram a procurar o significado das palavras, tentando uni-las em frases que fizessem sentido na história. Pouco a pouco, Aquiles voltou a se mover, no ponto interrompido:

“Não chores, amigo, pois Pátroclo morreu, e ele valia muito mais do que tu; eu próprio, filho de uma deusa, em breve encontrarei o meu fim” – dito o quê, atravessou-o com a espada.

O menino estremeceu, tomado pelo horror da cena; o pai, sensível, tratou de acalmá-lo, propondo, suavemente, que aprendesse de cor aquelas linhas para nunca mais esquecer a serena crueldade da mensagem de Aquiles.

À noite, o menino, que cresceria para se tornar o incomparável George Steiner, encontrou em seu quarto a sua primeira Ilíada, da qual nunca mais se separou. Seu pai havia entreaberto a porta de um mundo inteiramente novo – difícil, no início, quase incompreensível, mas tão fascinante que justificava todo o esforço necessário para entendê-lo. Era um verdadeiro professor.

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