sábado, 4 de abril de 2009



05 de abril de 2009
N° 15929 - DAVID COIMBRA


Chico Buarque, Belchior e o Rei

Em algumas horas, li todo o novo romance do Chico Buarque, Leite Derramado. Essa única linha bastaria para dizer de que tipo de livro estamos tratando. É muito bom. Supimpa, definiria o protagonista, um aristocrata centenário que, das entranhas de um leito de hospital, relembra sua longa existência.

Havia lido outros dois livros dele, Fazenda Modelo e Estorvo. Não gostei de nenhum. Cada página do Estorvo era um paralelepípedo de cedilhas, o enredo fazia jus ao título. Só fui até o fim porque era o Chico. Neste novo, não. Neste de agora, a gente lê o que o Chico escreveu como se o ouvisse cantar. Chico conta a história com naturalidade envolvente, sem truques, sem pedantismo. É uma história que flui.

Como o narrador tem mais de cem anos, Chico usa algumas das velhas joias do verbo. Uma personagem foi acometida de “eclâmpsia”, que maravilha. E outra pergunta se alguém tem “cheiro de corpo”. A certa altura o protagonista relata:

“Matilde adorava as folhas do antúrio, tão rubras, lembravam-lhe corações de matéria plástica”.

Matéria plástica! Há quanto tempo não lia ou ouvia alguém dizer matéria plástica.

Mas o melhor do livro é que nele Chico volta a ser o poeta das suas canções imortais, só que em prosa. Um exemplo singelo é quando o protagonista comenta:

“É esquisito ter lembranças de coisas que ainda não aconteceram”. Em outro trecho percebe-se que Chico não escreveu a frase; lapidou-a:

“Quando eu sair daqui, vamos começar vida nova numa cidade antiga, onde todos se cumprimentam e ninguém nos conheça”.

E o Chico sensual aparece em passagens suaves porém intensas como:

“Aqui não me darei ao desfrute de divulgar intimidades de Matilde, mas digo que cada mulher tem uma voz secreta, com melodia característica, só sabida de quem as leva para a cama”.

Fiquei contente com o livro, eu que sou um chiquista de primeira hora e estava meio decepcionado com a produção dele nos últimos anos. Mas, concluída a leitura, pensei que estava errado em esperar que o novo Chico continuasse sendo o velho Chico. Afinal, tudo aquilo que ele fez ele... já fez. Por que fazer de novo?

Chico tem capacidade criativa de sobra para não ser sempre o mesmo. Um homem de talento pode e até deve se renovar. Roberto Carlos é o Rei há 40 anos. Não compõe mais pétalas de música como:

“Se alguma vez você pensar em mim, não se esqueça de lembrar que eu nunca te esqueci”.

Nem constrói imagens como aquela em que ele, dirigindo velozmente seu carro pelas curvas da Estrada de Santos, vê pelo espelho retrovisor a imagem da amada se perder. Não. Isso ele não faz mais. O que ele faz agora nem é do meu agrado, mas é do agrado de um contingente sempre renovado de súditos.

Quer dizer: Roberto Carlos ainda está debaixo da coroa. Nunca saiu de lá. Mudou para continuar sendo o Roberto Carlos de sempre. Ou, pelo menos, o Roberto Carlos com o sucesso de sempre.

Outros mudam e perdem a flama. Belchior. Nos anos 70, Belchior desenterrou alguns tesouros para o acervo da MPB. “Meu bem, esconda um beijo pra mim nas dobras do blusão”. Quem é capaz de escrever algo assim hoje? Bem. Nem Belchior. Depois de um período de glória poética, o fogo criativo de Belchior se extinguiu.

Que gênero de talento será o de Ronaldinho? Sim, porque talento, é inegável, ele possui. Trata-se talvez do jogador mais habilidoso de todos os tempos a calçar uma chuteira no Rio Grande do Sul. Pois tenho a impressão de que ele está mudando.

Mudará e seu talento permanecerá intacto, só que atuando em outra função, como um Chico? Mudará para ser quem sabe menos virtuoso, mas sempre bem-sucedido, como o Rei? Ou mudará para se apagar e evolar-se na poeira dos anos, como um Belchior? Que será feito do talento de Ronaldinho? Até a Copa de 2010 o mundo haverá de descobrir.

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