quinta-feira, 24 de julho de 2008



Sua insensatez
Míriam Leitão - O Globo - 24/7/2008

Uma frase dessas cuja autoria se perdeu, de tão repetida que foi, está sendo confirmada pelo governo Cristina Kirchner: "Donde acaba la razón, empieza la Argentina."

Depois da derrota do aumento de impostos sobre a exportação de alimentos, a presidente errou sucessivamente: perseguiu o vice-presidente, hostilizou os vencedores e ontem ficou sem um dos seus auxiliares mais importantes.

O chefe de gabinete Alberto Fernández, que saiu ontem do governo, vem desde o mandato de Eduardo Duhalde. Foi quem evitou que Cristina renunciasse, como teria proposto o marido logo após a derrota da votação, no Senado, do projeto que elevava o imposto agrícola.

Foi ele que negociou com os líderes rurais e foi sistematicamente desautorizado pela presidente. Fernández é um homem da máquina, que serviu a vários governos, e se tornou peça-chave nos dois governos Kirchner.

Tanto que, antes de decidir ser candidata, a presidente teria dito ao marido: "Sem Alberto, não me lanço." Ontem ela ficou "sem Alberto" e, no seu lugar, nomeou um jovem de 36 anos, Sérgio Massa. Renunciou para abrir a temporada de reorganização do governo; necessária neste momento.

Cristina Kirchner tem errado em série. Durante a reação do empresariado rural, ela fincou pé e não negociou; desautorizando as tentativas feitas pelo seu chefe de governo.

No dia, avaliou equivocadamente o balanço de forças no Senado e orientou a bancada para que decidisse no voto. Após a derrota por um voto, justo o do vice-presidente Julio Cobos, a presidente reagiu mal.

Naquele dia, depois de perder, ela não recebeu ninguém. Passou o dia em reunião com o marido, Néstor Kirchner, na residência de Olivos. Com isso, fortaleceu a idéia de que não é ela que governa, mas, sim, o marido, ex-presidente. Cristina Kirchner consegue o pior de dois mundos.

Passa, ao mesmo tempo, a imagem de fraca e de inflexível. Fraca porque dá sinais seguidos de que é cada vez mais uma figura decorativa em seu próprio governo; mas não aceita flexibilizar suas posições quando em conflito com qualquer grupo. Longe de mostrar força, esse estilo finca-pé, de novo, lembra o marido.

Kirchner, o Néstor, governou com um estilo confrontacionista. Pôde fazer isso, pois encontrou a Argentina no fundo do poço e surfou como salvador da pátria na recuperação lentamente construída pelo ex-ministro Roberto Lavagna.

A Argentina passou a ser apresentada como um modelo alternativo que tinha dado certo: as tarifas estavam congeladas, o país dera um calote da dívida externa, mas mantinha boas taxas de crescimento (melhores que a dos países vizinhos), o desemprego estava em queda e ainda não havia o problema da inflação.

Para culminar, alguns investidores começaram a voltar. Saíram de uma depressão, que comeu 1/4 do PIB, para um período de recuperação e otimismo. Com alta popularidade, Néstor Kirchner exigiu e conseguiu superpoderes do Congresso. Poderoso, confrontou todos os que discordaram dele. Esse estilo é que entrou em colapso.

Após da derrota, o melhor para a presidente teria sido recuar, fazendo o elogio da democracia. E encontrar uma saída negociada que fortalecesse sua liderança e fizesse com que os recuos fossem entendidos como respeito democrático ao Congresso, e não como fraqueza.

Mas ela reagiu de forma infantil: fingiu nada estar acontecendo, não tocou no assunto nas cerimônias públicas dos dias seguintes, exibindo uma fingida tranqüilidade, enquanto os jornais publicaram que ela pensara em renúncia, incentivada pelo marido.

Na economia, a inflação continua subindo, reduzindo a capacidade de compra dos argentinos. Ela tira também fôlego do crescimento, mantido pela expansão dos gastos públicos, o que alimentará ainda mais a inflação.

O país já entrou no círculo vicioso que visitou em outros momentos. O PIB ainda cresce a 8%, mas o desemprego teve alta no último trimestre, e a inflação oficialmente está em 9,3%.

O economista Roberto Cachanosky publicou ontem um artigo no "La Nacion" dizendo que, desde que foi "destruída a credibilidade do Indec" (o IBGE deles), ele está tendo que recorrer a cálculos indiretos para saber a inflação.

Pelo aumento da arrecadação, descontando-se o crescimento, chegou aos 25% de inflação, que acha que é a verdadeira. Lembra ainda que o Instituto Torcuato di Tela fez uma pesquisa sobre expectativas de inflação que chegou a um índice de 32%.

Na política, o país revive sua velha inclinação para a divisão e a tragédia. Os cientistas políticos Eduardo Viola, da UnB, e Hector Leis, da Universidade de Santa Catarina, argentinos radicados no Brasil, escreveram juntos um artigo em que lembram as sucessivas vezes nas quais o país ficou dividido em duas alas.

Juan Domingo Perón dividiu o país entre os peronistas e os antiperonistas; da mesma forma que agora os Kirchner dividem a Argentina entre os que os apóiam e todos os que discordam deles, que são tratados como inimigos.

Emblemático foi o que aconteceu em Buenos Aires, na véspera da votação; duas imensas manifestações, contra e a favor da lei que seria votada, da mesma dimensão e na mesma cidade.

O primeiro Perón, o de 1946, confrontou o poderoso setor agrário; o segundo, o de 1973, reviveu a velha síndrome trágica do país.

Os Kirchner revivem o primeiro Perón, com a oposição ao setor que garante a exportação e a riqueza. A Argentina volta a namorar o precipício.

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