quarta-feira, 30 de julho de 2008


GILBERTO DUPAS

Prestando contas à vida

Nesse momento especial, entre a vida e a morte, o homem comum pode filosofar; e, assim, flertar com a imortalidade

AS POPULAÇÕES brasileira e mundial têm envelhecido muito rapidamente. É uma séria questão para os sistemas de previdência e saúde pública e para os próprios velhos, mais solitários e dependentes.

No entanto, é possível transformar velhice em liberdade. Nesse momento especial, entre a vida e a morte, o homem comum pode filosofar; e, assim, flertar com a imortalidade.

A filosofia tem saído da moda enfrentando rivais cada vez mais arrogantes. Informática, marketing e design tentam substituir o personagem conceitual -o filósofo ou o artista- por telas planas, telefones celulares e internet. É o reinado dos simulacros.

Segundo Deleuze e Guatari, filosofar é a arte de criar conceitos potentes para tentar dar significado a questões para sempre mal resolvidas, como velhice e morte. Mas conceito não é dado ou comprado, é criado. E filosofar é criar ou mudar conceitos.
Para eles, filósofos e artistas têm uma saúde frágil.

Não por causa de suas doenças ou neuroses, mas porque viram na vida algo grande demais para suportar, o que pôs neles a marca discreta da morte. Esse algo é também a fonte que nos faz viver através das "doenças do vivido", justamente o que Nietzsche chama de saúde.

O que define filosofia e arte, duas das grandes formas de pensamento, é enfrentar o caos esboçando um plano.

Para tanto, a filosofia formula conceitos, e a arte, percepções. Essas disciplinas não são como religiões, que invocam deuses para pintar sob nossos guarda-sóis um firmamento artificial. Ao contrário, elas propõem que só venceremos se rasgarmos o pano pintado e enfrentarmos o caos.

O sistema econômico e cultural entrega aos homens comuns grandes guarda-sóis com forros pintados que lhes dão uma falsa segurança enquanto servem à lógica própria do capital. São do tipo "comprando um novo iPod ou estendendo a vida a qualquer preço você pode ser feliz".

Por baixo do pano, essa lógica desenha suas palavras de ordem como um firmamento único. Cabe ao filósofo e ao artista contidos em nós abrir uma fenda no guarda-sol e fazer passar um pouco do caos livre e tempestuoso que dá sentido à vida.

A cada rasgo que fizermos, os gênios da comunicação a serviço do pensamento único correrão a preencher a fenda e lotá-la de novas certezas. Será preciso, então, cortar novas fendas, operar novas destruições, restituindo a novidade que já não podia mais ser vista.

O pensamento único se esconde atrás de um tipo religioso de fé cega num futuro que outros nos impõem.

Nunca as tecnologias progrediram tanto na exploração do corpo e da mente. E, no entanto, Roudinesco nos lembra de que em nenhuma época o sofrimento psíquico foi tão vivo: solidão, psicotrópicos, tédio, depressão, desamparo, obesidade, uma pílula a cada minuto de vida: "Quanto mais se promete a felicidade e a segurança, mais persiste a infelicidade, mais aumenta o risco".

Ela cita Canguilhem, Sartre, Foucault, Althusser, Deleuze e Derrida como alguns dos que se recusaram a aceitar uma ideologia da submissão e a virar soldados de uma "normalização" do homem. Eles gostariam de transformar todos nós em rebeldes, seres capazes de abordar a existência como consciência do mundo.

Podemos compreender, então, como a morte pode prestar contas à vida; ou seja, como se pode aceitar a morte para que haja vida. Na "Ilíada", Aquiles encarna o ideal absoluto "da bela morte e da vida breve", origem da concepção grega de heroísmo.

Roudinesco lembra Vernant, para quem um dos grandes enigmas da condição humana é encontrar na morte o meio de superá-la, vencê-la dando-lhe um sentido do qual ela é completamente desprovida. É quando o agir significante se transforma em obra eterna. Doença e morte, paradoxalmente, são parte da vida.

Dentro dessa perspectiva, o doente, com seu sofrimento e sua dor, é o único capaz de julgar sobre sua normalidade. Quem quiser transformar a vida num conjunto de funções que resistem à morte fará com que a morte não lhe pertença mais.

No entanto, a morte está inscrita na história da vida, assim como a doença na existência de cada sujeito.

Fenômeno progressivo de degradação lenta dos corpos, ela se apodera do homem desde o seu nascimento, habitando-o ao longo de sua vida até a última passagem.

Mas nosso espírito, enquanto construindo os significados que atribuímos à vida, pode ter o gostinho da imortalidade. Depende de nós. Basta sermos capazes de abrir pequenos furos no falso firmamento que querem nos impor e deixar passar um pouco de caos.

GILBERTO DUPAS , 65, é coordenador geral do Grupo de Conjuntura Internacional da USP, presidente do Instituto de Estudos Econômicos e Internacionais (IEEI) e autor, entre outras obras, de "O Mito do Progresso" (Unesp).

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