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domingo, 20 de julho de 2008
20 de julho de 2008
N° 15668 - Paulo Sant'ana
O valor dos mortos
Todas as civilizações, ocidentais e orientais, emprestam um valor extraordinário aos cadáveres de seus integrantes.
Seguidamente, nos grandes desastres aviatórios, é intensa e dramática a expectativa dos familiares das vítimas pela identificação de seus mortos.
Os restos mortais parecem ter valor igual ao dos corpos com vida, tal a obsessão dos parentes dos mortos para conceder-lhes sepulturas dignas.
Nunca antes esse ritual fúnebre foi tão valorizado quanto na estranha troca havida na quarta-feira passada no Oriente Médio, quando após intensas e demoradas negociações, que duraram anos, Israel concordou em entregar para o Líbano cinco militantes xiitas do movimento Hezbollah.
Entre os cinco prisioneiros entregues por Israel ao seu país de origem, estava o mais valioso deles, Samir Kantar, que em 1979 havia praticado um atentado contra um pai israelense e sua filha de quatro anos de idade, matando o pai a tiros e esmagando o crânio da menininha a coronhadas.
Israel conseguiu capturar Samir Kantar e condenou-o à prisão perpétua. Já o detinha havia 29 anos.
Além de Samir, além dos outros quatro guerrilheiros do Hezbollah, vivos e intactos, Israel devolveu ao Líbano 199 corpos de militantes libaneses e da guerrilha xiita.
Todo esse "tesouro" proveniente do butim da guerra, Israel trocou-o somente pelos dois corpos dos soldados israelenses que foram capturados pelo Hezbollah em 2006, estopim da guerra que afinal veio a vitimar 1,2 mil libaneses e 159 israelenses.
Os familiares judeus desses dois soldados, durante as negociações para o cerimonial de troca, tinham a esperança de que eles ainda estivessem vivos.
Mas receberam apenas na quarta-feira os cadáveres de seus dois filhos.
Apenas os despojos.
O que impressiona nessa liturgia fatídica da guerra é o valor que Israel deu para os corpos de seus dois soldados, a ponto de entregar vivos cinco militantes do Hezbollah que tinham praticado atentados sérios e destrutivos no território judeu, mais ainda 199 corpos de militantes libaneses que foram mortos em ações de combate.
Foram 199 corpos e cinco militantes vivos contra apenas dois corpos de soldados israelenses.
Uma troca desigual mas altamente ilustrativa para a importância afetiva que as duas partes em litígio de guerra dão para a memória de seus mortos.
Era preciso resgatar os prisioneiros, ainda que mortos, era insuportável a idéia de que os cadáveres permanecessem em poder do inimigo, mas acima de tudo era imprescindível que as famílias dos mortos obtivessem o consolo de sepultá-los em território pátrio.
Os cinco prisioneiros do Hezbollah devolvidos por Israel foram recebidos no Líbano como heróis, aclamados nas ruas.
Os dois israelenses mortos e entregues pelo Líbano foram recebidos com prantos e honras de heróis e mártires.
Impressiona também que tanto o Hezbollah quanto Israel tivessem guardado como relíquias de guerra os corpos dos dois soldados israelenses e os corpos dos 199 militantes xiitas, certamente prevendo que eles mais tarde serviriam de valiosa moeda de troca.
Estranhas e intrigantes guerra e rivalidade que valorizam a vida de seus povos, mas também reverenciam os corpos de seus mortos, como que a acreditar que os cadáveres, num futuro com que certamente sonham, servirão de flores para adubar o terreno da amizade entre os dois povos que um dia ressurgirá,
voltando a celebrar uma paz definitiva entre judeus e árabes, que nada mais são do que irmãos de sangue e território, que se apartaram um dia pelos caprichos perversos da incompreensão humana.
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