quarta-feira, 30 de julho de 2008



30 de julho de 2008
N° 15678 - David Coimbra


Quero requintes de crueldade!

Meu filhinho foi mordido por um cachorro. Um desses cachorros de madame, manja? Pequeno, pouco maior do que um gato, branco, cheio de frufrus, cachorro de apartamento. Um rato peludo, na verdade, pertencente à sub-raça dos cachorros. Mas ainda assim um bicho com dentes e garras e tudo mais. Mordeu meu filhinho no rosto. Fiquei furioso.

Bem sei que as crianças se machucam e tal. Mas isso acontece quando a criança tem dois anos de idade, está na escolinha e leva um uppercut de um colega, ou se esborracha no chão enquanto está brincando, ou puxa o rabo de um vira-lata e o vira-lata lhe dá uma dentada.

Agora, se o nenê tem 11 meses de idade, se nem caminhar caminha, se está num apartamento, cercado de adultos, então esse gênero de acidentes não pode acontecer. Não pode. É proibido.

Mas aconteceu.

Logo, fiquei furioso. Ainda estou. Cada uma dessas vírgulas está sendo pendurada com ódio, de cada cedilha balança o ressentimento. Imagino como se sente um pai que tem o filho atacado por um pitbull. Porque uma criança ser atacada por um pitbull também não pode, também é proibido. Por várias razões. Uma delas é que esse pitbull não existia na natureza. Foi enxerto.

Outra é que, uma vez que inventaram esse bicho e ele provou ser uma fera perigosa, deveria ser apartado do convívio com seres humanos. Cidade não é lugar para animais selvagens, como pitbulls e torcedores de futebol que vão ao jogo para brigar. Por isso, sou pela eliminação sumária de todos os pitbulls. Pena de morte. Paredón.

No caso dos pitbulls, reivindico uma ação da Justiça. Da legislação. Algo racional. A sociedade deveria impedir a convivência entre humanos e feras, e pronto. No caso do rato peludo que mordeu meu filhinho, não sou racional, nem posso ser, nem quero. Alimenta-me, aí, o baixo sentimento da vingança.

Gostaria de eliminá-lo lentamente, com requintes de crueldade. Algo como uma tortura chinesa chamada Morte das Mil Maneiras. É muito engenhoso. O verdugo chinês fazia assim: pegava um pote de porcelana, os chineses são muito bons em porcelana, e nele colocava mil papeizinhos.

Em cada papel estava escrito o nome de algum órgão do corpo humano, como olho direito, unha do dedo mínimo esquerdo ou cérebro. Só uma pequena minoria era composta por órgãos vitais, como o coração. Bem. Ante o olhar aterrado da vítima, o carrasco ia ao pote e tomava um papel aleatoriamente.

Se pegasse o tal olho direito, ficaria uma hora trabalhando nele, remoendo-o com pinças, furando-o com ferros, queimando-o com brasas. O suplício podia levar dias ou semanas ou até meses, o torturado ficava torcendo para que fosse sorteado com um órgão fatal.

Tive ganas de empregar esse sutil método oriental com aquele cachorro, ao ver meu nenê com o rosto sangrando e as marcas de uma dentada a meio centímetro do seu olhinho.

Os donos do cachorro que me desculpem, eles são boas pessoas e amam o bicho como se fosse membro da família, mas não é nada pessoal - teria idênticas intenções com qualquer cachorro que atacasse meu filhinho. Neste momento, ao descrever isso, até me acalmo um pouco, o ódio se me esvai pelas pontas dos dedos. Só que, nas horas seguintes ao ataque do rato peludo, mal conseguia controlar a raiva.

Tinha raiva de todo o mundo animal, dos grandes elefantes aos pequeninos protozoários, do Pluto e do Pateta, tinha raiva dos defensores dos animais, dos donos de bichos de estimação, das pet shops, dos veterinários, dos zoológicos, das vegetarianas,

dos anões, fiquei com raiva de uma mulher que dirigia um maldito carro verde a 20 por hora, trancando todo o trânsito, e também de um sujeito que cortou a minha frente com uma caminhonete preta, amaldiçoei cada pessoa que me perguntou amigavelmente se já estou de malas prontas para viajar para a China, que vou para a China,

e pensei que minha maldição poderia cair sobre todos os um bilhão e trezentos milhões de chineses e ainda sobre mais um bilhão de indianos e, quem sabe, sobre outro tanto de ianques, russos, europeus e sul-americanos, sentia ódio das serpentes rastejantes e das aves do céu, dos mamíferos, dos anfíbios, dos répteis e das alfaces, de tudo, tudo, aí aquele torcedor me ligou. Não disse alô nem nada. Foi ralhando:

- Olha aqui, ó: a cobertura de vocês está muito colorada.

E foi deitando falação sobre a quantidade de páginas que se dá ao Inter em comparação com as do Grêmio e bibibi. Tentei explicar que o Inter tinha feito contratações importantes e tal, mas ele não se convencia.

- Muito colorada! - repetia. - Como sempre: muito colorada!

Nada que eu dissesse lhe convenceria. Normalmente, eu anotaria a queixa e lhe daria algum consolo falando da próxima grande cobertura do Grêmio. Mas estava irritado, queria dar um soco em alguém. Perdi a paciência. Porém, não toda. Não fui grosseiro, odeio grosseria. Usei da ironia.

- Sabe o que é? - falei. - É que aqui só tem colorado. Mais até: é uma condição para entrar nessa editoria. Tem que ser colorado, senão não é contratado.

Ele ficou alguns segundos em silêncio. Depois baixou o tom de voz: - Não é isso. Não estou dizendo que vocês são colorados...

- Meu senhor - respondi, com urbanidade, sem perder a firmeza. - O senhor disse que a nossa cobertura é muito colorada.

Então, ou uma coisa ou outra: ou nós somos todos colorados, e somos mal-intencionados, ou somos incompetentes, e temos que ser demitidos. Qual das duas? - Não... não...

- Tentei argumentar com o senhor, disse que a causa desse aparente desequilíbrio é a seqüência de grandes contratações do Inter, mas o senhor não concordou com meu argumento. - Bom, talvez seja isso mesmo...

- O senhor acha? - Acho. - Obrigado. - Não tem de quê. Despedimo-nos com cumprimentos afetuosos. Cara, às vezes, um pouco de raiva faz bem.

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