sábado, 12 de julho de 2008



13 de julho de 2008
N° 15661 - Luis Fernando Verissimo


Dentes

Os dois foram colegas na escola. Amigos inseparáveis. Mas separaram-se. E um dia se reencontram. Um bem vestido, com sinais ostensivos de riqueza.

O outro mal. Mal vestido, mal cuidado, mal tudo. Abraçam-se. Que coisa! Há quanto tempo! Tratam-se pelos apelidos de antigamente. Joca e Bolão.

- Você se deu bem, hein Bolão? Olhe só. - É. O meu pai fez fortuna, eu fiquei independente. Estou bem, sim. E você, Joca. O que aconteceu com você?

- Pois é. A vida...

- Não. Não me venha com essa de vida, de culpa da sociedade. Somos indivíduos, e cada indivíduo é responsável pelo seu destino. - Então você é responsável pelo seu pai ter enriquecido e eu pelo meu ter morrido e nos deixado na pior e...

- Seus dentes, por exemplo. - O quê?

- Não vai me dizer que seus dentes ficaram desse jeito por culpa da sociedade. Você e eu começamos com os mesmos dentes, mas eu cuidei dos meus.

- Porque você tinha dinheiro! - Não, não. Porque eu dei prioridade à higiene bucal e você, obviamente, não.

- Olha aqui, Bolão...Bolão levanta o livro que tem na mão.

- Sabe quem escreveu este livro, Joca? Eu. Como vivo de rendas e tenho muito tempo livre, escrevo. E eu mesmo publico. Estes são ensaios sobre os filósofos do século 17.

Onde sustento, por exemplo, que o pensamento cartesiano só se tornou possível porque Descartes escrevia em francês em vez de latim escolástico.

A filosofia moderna é uma decorrência da linguagem. Descartes desenvolveu um sistema de argumentação abstrata porque saiu do latim para o francês, enquanto Bacon, por exemplo, não conseguiu fazer o mesmo com o inglês. Entende? - Não.

- Claro que não. Bacon e Descartes educaram-se com o mesmo latim, como você e eu estivemos nos mesmos bancos escolares e aprendemos com os mesmos professores, mas depois cada um cresceu na sua própria língua. Isto é, na sua própria cultura, no seu próprio universo de referências, na sua própria sintaxe.

- Mas se os dois fossem franceses, desenvolveriam o mesmo sistema de pensamento, já que eram iguais.

- Mas os dois não eram franceses, meu caro. Portanto não eram iguais. Um era francês e o outro era inglês. De nascimento. Não foi a sociedade que fez um francês e o outro inglês. Foi a fatalidade genética.

- Mas você e eu falamos a mesma língua.

- O português que nós dois aprendemos juntos eqüivale ao latim com que Descartes e Bacon aprenderam a pensar, na escola. Mas Descartes estava destinado a falar francês, a língua do discernimento, e Bacon condenado ao rude inglês.

Eu estava destinado a transcender o meu latim para a linguagem do saber e do empreendimento intelectual, você estava destinado a transcender o seu latim para a linguagem do ressentimento e da perplexidade, a linguagem do nada.

Falamos a mesma língua na escola, depois desaparecemos dentro de nossas respectivas classes e culturas, como barcos se afastando no nevoeiro.

- Mas você acabou de dizer que cada indivíduo é responsável pelo seu destino.

- Responsável pelo que faz nos limites da sua predestinação. E, se me recordo bem, estávamos falando de dentes. Os meus são perfeitos, os seus estão podres. E isso não tem nada a ver com dinheiro, sorte ou dinâmica social, Joca. Cada indivíduo é responsável, ao menos, pelo estado dos seus dentes.

- E pelo estado dos dentes dos outros. - Como assim?

- Eu não estou predestinado a quebrar seus dentes com um soco. Mas posso decidir quebrá-los. Como indivíduo, estarei decidindo o meu destino. Ou, no caso, o destino dos seus dentes.

- Joca, espera um pouquinho. Vamos conversar! - Você esqueceu? Nós não falamos a mesma língua. Nenhum entendimento é possível entre nós dois. - Espera, Joca!

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