sábado, 26 de julho de 2008



27 de julho de 2008
N° 15675 - Moacyr Scliar


Traiu ou não traiu?

No Brasil, a batalha final não será travada entre o Bem e o Mal, entre juízes e o STF, ou entre o Inter e o Grêmio. A batalha final será travada entre os que acham que Capitu traiu e aqueles que defendem a idéia de que Capitu não traiu.

É uma discussão que agora tem mais de um século, e que volta à tona por causa do centenário do criador de Capitu, o grande Machado de Assis, autor de um romance que gerações e gerações, e não só no Brasil, vêm lendo: Dom Casmurro. Casmurro, que designa um cara fechado, mal-humorado, é uma palavra hoje pouco usada; mas o livro continua mobilizando emoções.

A história é narrada pelo próprio Dom Casmurro, um advogado chamado Bentinho; já na adolescência ele se apaixona por Capitolina (outro nome que ninguém mais usaria), a Capitu. Casam, e depois de algum tempo, têm um filho, Ezequiel.

Todos os ingredientes para a felicidade estão presentes, mas Bentinho começa a suspeitar que Ezequiel não é filho dele, e sim de Escobar, o melhor amigo do casal. Uma dúvida que na época - não havia teste de DNA - não dava para esclarecer. E o ciúme vai destruir a vida da família: o casal separa-se, Capitu morre, Ezequiel morre, Bentinho fica só e vira Dom Casmurro.

Machado ficou conhecido como o Bruxo do Cosme Velho (este, o bairro em que morava) e neste romance a gente entende a razão do apelido: quando terminamos, ficamos sem saber se Bentinho relatou o que de fato aconteceu ou se deu vazão à sua fantasia paranóica. E este é o grande mérito do livro.

Dom Casmurro não é, claro, a única história de ciúmes; Othelo, de Shakespeare, aborda o mesmo tema, mas, nesta peça, não ficamos em dúvida: sabemos que se trata da fúria de um ciumento.

Pergunta: como Capitu contaria a mesma história? Esta questão serviu de desafio para Domício Proença Filho, escritor, professor de literatura, membro da Academia Brasileira de Letras (e, a propósito, casado com uma gaúcha, a também professora Rejane). Domício, autoridade em Machado, escreveu um romance com a versão de Capitu (Capitu: Memórias Póstumas).

Um monólogo extraído desse romance foi recentemente apresentado no teatro da ABL por esta grande atriz que é Fernanda Montenegro. Brilhante desempenho, que levou o enorme público ao delírio e que também fez pensar sobre um problema que há milênios nos atormenta: o que é, afinal, a verdade?

Como descobri-la? Questão tão difícil quanto crucial. A propósito, há um antigo e famoso filme japonês, Rashomon, que narra um violento acontecimento visto por quatro pessoas - e cada uma conta algo diferente.

Mais um exemplo: a nobelizada escritora sul-africana Nadine Gordimer escreveu uma Carta ao Filho, resposta à famosa Carta ao Pai, em que Franz Kafka se queixa amargamente do seu genitor. De novo: é o outro, e bem diferente, lado da moeda.

Emerge daí uma lição óbvia: cuidado com a ruminação, cuidado com o raivoso monólogo interior.

A verdade é dialética, nasce do diálogo - entre pessoas, entre instituições, entre correntes políticas, entre grupos sociais. Quando a pessoa fala consigo própria nem sempre tem o interlocutor adequado, como mostra a história do homem que, tarde da noite, vinha dirigindo por uma estrada deserta, quando furou um pneu.

Ele não tinha macaco para fazer a troca; mas avistou a luzinha de uma casa e para lá se dirigiu, na esperança de que o dono tivesse um macaco para lhe emprestar.

No caminho foi imaginando o que o homem lhe diria: mas não, eu não lhe conheço, como é que vou lhe emprestar o macaco etc. Sua raiva vai crescendo, ele chega à casa, bate à porta, e quando o homem abre, grita: "Sabe de uma coisa? Enfia teu macaco no rabo"!

Bentinho era muito refinado para usar estas expressões. Mas, na estrada da vida, ele ficou parado igual, sem que ninguém o ajudasse. E isto até hoje nos faz pensar. Entenderam agora por que Machado é um mestre?

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