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sábado, 26 de julho de 2008
26 de julho de 2008
N° 15674 - Cláudia Laitano
Hermana duda
Há coisa de dois meses, passou por Porto Alegre, em temporada muito mais curta do que merecia, o espetáculo carioca Sassaricando - E o Rio Inventou a Marchinha, revista musical concebida para resgatar do baú do esquecimento algumas das melodias que embalaram os carnavais dos nossos pais e avós.
Com aquele tipo de produção impecável que aprendemos a associar aos musicais da Broadway, temperado pelo inimitável borogodó nacional, o espetáculo tem técnica, emoção, bom gosto e um repertório que é um biscuit:
cerca de cem marchinhas, selecionadas a partir de uma relação inicial de mais de mil canções compostas entre os anos 20 e 70, abordando temas como política, cotidiano e relações amorosas, em letras que vão do lirismo mais delicado ao franco esculacho.
Por motivos óbvios, a maior parte da platéia que lotou o Theatro São Pedro durante aquelas três noites de maio era formada por gente que já começava a sassaricar quando a bossa nova foi inventada, há 50 anos. A emoção desse público diante de canções como Máscara Negra, Cabeleira do Zezé e Touradas em Madri foi um espetáculo à parte.
Quem prestasse atenção seria capaz de capturar memórias quase em estado sólido na fisionomia da platéia: o baile no clube mais animado da cidade, o namoro no portão, o rádio de válvulas na sala de uma casa que já nem existe mais.
As marchinhas relembradas no palco não eram apenas a crônica dos usos e costumes de uma época, eram parte da trilha musical individual de cada uma daquelas pessoas. Experiências únicas, emoções partilhadas.
Na última semana, o compositor uruguaio Jorge Drexler fez dois shows históricos em Porto Alegre, pela qualidade musical, sem dúvida, mas principalmente pela empatia com o público - experiências únicas, emoções partilhadas.
Como os compositores das marchinhas, Drexler, 43 anos, é um cronista atento de sua época - fala de globalização, terrorismo, internet, mas com delicadeza suficiente para que nada soe exageradamente noticioso.
Algumas de suas letras também falam de amor, e são muito bonitas e atemporais. Mas é provavelmente a vertente Hermana Duda de sua obra que explica a sensação de que o músico uruguaio sintoniza com seu público em uma freqüência que vai além da qualidade lírica da sua poesia.
Nessa canção, Drexler fala da liberdade de escolher, de mudar, de desconfiar de tudo - mas pede uma trégua para a "hermana duda", companheira e tirana, pelo menos por uma noite.
Muitas de suas letras tratam de questões como essa - que, genericamente, e na falta de um nome melhor, podemos batizar de "filosóficas". A música popular debruçar-se sobre temas como solidão, angústia existencial, falta de sentido, transitoriedade não chega a ser uma grande novidade.
Nova talvez seja a popularidade de reflexões como essas, que se não chegam ao nível de profundidade de um tratado filosófico pelo menos revelam algo muito interessante sobre nossa época.
Como Drexler nos lembra em Hermana Duda, já não temos mais para quem rezar pedindo luz, andamos tateando às cegas, mas isso não é necessariamente ruim.
Podemos estar condenados a conviver com a "irmã dúvida" mordendo nossos calcanhares - mas o contrário, pensando bem, é muito pior.
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