sábado, 27 de agosto de 2022


27 DE AGOSTO DE 2022
FRANCISCO MARSHALL

A VIAGEM DA MUSA CLIO

Visitou-nos por uns tempos, em Porto Alegre, a deusa Clio, filha de Memória (Mnemosyne) e de Zeus, a Musa que proclama, dá fama, celebra e transmite o que tem valor. É o saber realizado com beleza, e a beleza com saber, em ritos mágicos, com miríades de efeitos fecundos. Essa aparição se estendeu por 17 anos, em um templo que muitos chamavam oásis, um casarão marrom, antigo e atual, na Cidade Baixa, o StudioClio. É próprio desta e das outras oito Musas realizar-se como memória, e assim essa epifania de Clio ora converte-se em dom da mente, com afeto, no coração e na lembrança dos que a conheceram.

Musa não morre, apenas revela-se quando quer, e deixa seu rastro gracioso como parte da paisagem e da vida. Assim, deusa misteriosa, Clio pode manifestar-se a qualquer momento, para os que puderem reconhecê-la e logo alçar sua existência para novos mundos, luminosos. E quem poderá esquecer dessa visita potente e dadivosa, havida em altar apto aos melhores ritos da cultura?

O mito das Musas, entre os gregos, representou o valor sagrado do conhecimento e da civilização. Dentre as várias potências divinas, a estas toca infundir saberes elevados no tempo em que vivemos, salvando-nos da ignorância e da brutalidade. Bem sabemos que todas as divindades são palavras e imagens, invenções culturais com e sem a matéria dos quatro elementos; são ficções, mas podem ter funções tão reais quanto o pão, o vinho, o fogo e o amor. Mesmo ateus e agnósticos rendem-se ao poder do símbolo e podem entender o que são esses dons sagrados, sem as mentiras das religiões, com a energia necessária da arte. E vai muito bem considerar-se sagrado o conhecimento, sobretudo em eras e terras em que predomina seu oposto.

Foram centenas de concertos, exposições, almoços e banquetes culturais, cursos, expedições, ciclos de arte, ciência e educação e convívio, que deram pleno sentido à palavra cultura - cultivar-nos e promover encanto e desenvolvimento. Com os sentidos atiçados, corpos ávidos subiam a pequena rampa ou saíam do auditório para abraços emocionados, em uma comunidade unida pelo que há de mais puro e nobre. Aquele jardim histórico, feito só de bons pensamentos, realizou-se com a aura da philia - a força de atração que é amor e amizade, o poder gregário, necessário para que nossa espécie seja mais do que selva de panças disputando presas, e que possamos unir-nos com desejo e sorrisos, sabendo que é possível um destino animado por arte e humanismo. 

Essa fonte deveria jorrar em todos os bairros da cidade, para alimentar a todos com néctar e ambrosia, a imortalidade de pagãos antigos e de Beethoven e Villa-Lobos, do barroco ao blues, em palavras de versos e livros, veículos entre muitos tempos, mentes e cidades, as imagens e percepções, os engenhos e desafios da linguagem, a sede, a fome e a curiosidade que ao saciarem-se querem sempre mais, desejar e pensar, gozar a vida em sua plenitude.

Ora a Musa Clio sopra com afeto o doce pólen de suas primaveras, e agradece a Ana Maria e aos seus, ao talento e ao trabalho de artistas e ao amor de uma comunidade iluminada.

FRANCISCO MARSHALL

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