22 DE AGOSTO DE 2022
CAPA
O voo da vitória
Longa-metragem produzido no Acre, "Noites Alienígenas" foi o grande vencedor do Festival de Cinema de Gramado 2022
Noites Alienígenas atravessou o Brasil para conquistar o 50º Festival de Cinema de Gramado. Produzido no Acre, o filme dirigido por Sérgio de Carvalho conquistou na noite de sábado, no Palácio dos Festivais, cinco Kikitos: melhor longa-metragem brasileiro, ator (o estreante Gabriel Knoxx, rapper como o seu personagem), ator coadjuvante (Chico Diaz), atriz coadjuvante (Joana Gatis) e o troféu da crítica. Também recebeu uma menção honrosa pela atuação de Adanilo.
- Foi um filme ovni que aterrissou em Gramado e foi uma grande surpresa - celebrou o diretor, lembrando o comentário da crítica de cinema Maria do Rosário Caetano.
- A gente vem de um lugar que sofreu muito bullying, com pessoas dizendo que não existia. Mas a gente existe. A foto da cultura brasileira costuma ser muito branca e masculina, mas agora nós, mulheres, indígenas, negros, demos uma empurradinha para o lado e estamos na foto também. Nunca mais este festival será igual, porque hoje abriu uma porta ao reconhecer a cultura periférica. A gente é fruto de política pública, de dinheiro descentralizado, que chega lá nas bordas - afirmou, no palco, a produtora executiva Karla Martins, toda vestida de vermelho, cor que marcou o figurino da equipe.
A propósito, praticamente todos os vencedores aproveitaram o púlpito para manifestarem apoio ao candidato do PT à Presidência da República, Luiz Inácio Lula da Silva, e repúdio ao atual mandatário, Jair Bolsonaro (PL), que pleiteia a reeleição. Na hora da foto oficial com os ganhadores dos Kikitos distribuídos no encerramento do festival, alguns dos vencedores desfraldaram uma bandeira com os dizeres "Fora, Bolsonaro".
Com estreia comercial prevista para 2023, Noites Alienígenas sintetizou uma tônica desta edição de Gramado: a de dar visibilidade e voz às populações marginalizadas e às comunidades periféricas. Entre os outros longas nacionais laureados, está Marte Um, de Gabriel Martins, que recebeu quatro Kikitos ao acompanhar os sonhos e os perrengues de uma família negra da periferia de Contagem (MG). Já A Mãe, de Cristiano Burlan, é ambientado em um bairro pobre da capital paulista, o Jardim Romano, onde a protagonista luta para encontrar o filho adolescente - desaparecido após uma abordagem policial.
Nos curtas, o grande ganhador foi Fantasma Neon (RJ), de Leonardo Martinelli, um musical sobre os entregadores de aplicativo que usam bicicleta e que deve virar longa pelos planos do diretor.
Amazônia
Noites Alienígenas é inspirado no romance homônimo publicado em 2011 pelo próprio diretor, um paulista que há 20 anos mora no Acre, e se passa nos limites entre o urbano e a Floresta Amazônica. O título tem um duplo sentido. Por um lado, alude à porção realismo mágico do filme; por outro, sinaliza para uma triste realidade: a abdução da juventude da capital Rio Branco pelo crime organizado, a partir da chegada das facções do Sudeste.
Com planos belíssimos, Carvalho faz rodar uma trágica ciranda de tipos e situações que não deixam de ser clichês. Mas essa condição é minimizada pela paixão do elenco - quase todo praticamente amador - e pela relevância sociopolítica da trama.
Paulo, vivido por Adanilo, ilustra a ruína dos povos indígenas perante o tal de "progresso" das cidades: ele se tornou dependente químico e rouba pertences da mãe para comprar drogas. Há um rapper de 17 anos, Rivelino, o Riva (Gabriel Knoxx), que é apaixonado pela garçonete e mãe solteira Sandra (Gleici Damasceno, campeã do BBB 18) e que acaba se juntando a uma facção. E é atrás de notícias sobre esse garoto que uma mãe hedonista e em princípio um tanto distante, Beatriz (Joana Gatis), vai à casa de Alê (Chico Diaz), um traficante "das antigas", que não compactua da violência empregada pelos novos barões do crime, que rimam irmandade com mortandade - uma imagem emblemática é a do soldado do tráfico que carrega uma arma na cintura e, às costas, traz tatuado o nome de Jesus Cristo.
Discursos
Na cerimônia, Gabriel Knoxx estrelou um dos momentos mais emocionantes. Ele tinha acabado de descer do palco, onde falara em nome dos coadjuvantes premiados, quando descobriu que havia sido escolhido o melhor ator. Às lágrimas, refez o caminho no corredor da plateia e voltou ao púlpito:
- Dedico esse prêmio à minha mãe, à minha tia e à minha avó. Fui criado por três mães solteiras. Quantas vezes eu não pensei em desistir? Mas elas me fizeram continuar.
Antes, Knoxx valorizara a importância dos prêmios junto a adolescentes e jovens acreanos desafiados pela pobreza ("Minha casa ficava em cima de um esgoto", ele lembrou) e acuados ou seduzidos pela criminalidade, mostrando que a arte "é um caminho".
- Sonhos são possíveis - afirmou o ator.
Suas palavras ecoaram nos agradecimentos de Gleici Damasceno, que fez um trocadilho involuntário:
- A gente vai voltar para o Acre acreditando.
TICIANO OSÓRIO
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